Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 29 de julho de 2007

OS CÃES DE VELÁZQUEZ

Miguel Veiga, querido amigo, perdeu recentemente o seu cão Timmy, com quem o meu Jasão mantinha alguma correspondência de afectos. Quem quer que minorize os sentimentos que nisto se envolvem, ou os torne ojecto de desprezo, merece a mais fria das indiferenças com que se devem tratar os analfabetos da natureza humana. Não tenho a menor simpatia pelas religiões da fraternidade inextensível aos bichos, nem pelos teólogos que transformam o lobo de Gúbio, ou o canídeo que costuma acompanhar São Roque, num adereço metafórico da iconografia da flos sanctorum.
Chegou-me a notícia da morte de Timmy imediatamente a seguir à visita que fiz à exposição de Velàzquez, patente na National Gallery em Londres. Às várias razões que recomendam a mostra a quem puder ir até lá, e que justificam as horas passadas na fila dos que pretendem entrar, haverá que acrescer a de ser Diego Velázquez, ele também, amante desses solidários partícipes dos dias que nos vão cabendo. A consciência com que o pintor se debruça sobre tais criaturas, vendo nelas, mais do que a figura decorativa, o verdadeiro espelho em que se reflecte muito daquilo que somos, converte o percurso das quarenta e seis obras-primas numa empresa de auto-conhecimento, e não numa pura lição que é o que menos importa buscar na frequência de qualquer artista.
Os cães de Velázquez respeitam a estratificação social, e jogam com ela como com uma entidade inamovível. Reaccionários como são, e por isso adversos a medidas de legalização do aborto, acolhem valores certos, preferindo à conveniência política o conforto das relações, e optando pela liberdade de amar como, quando e onde lhes apetece, independentemente dos ditames de qualquer catecismo. São mais proveitosos em suma como exemplo comportamental do que os que no seu afã de reequilibra o Mundo não tardarão a impor o interdito do presépio público, ao qual de resto os animais alegremente concorrem, vendo na cena do nascimento de Jesus Cristo um ameaçador símbolo religioso.
O rafeirito que defende o patriarca Jacob, ao tomar conhecimento do destino de José, seu filho, porventura devorado pelos brutos do deserto, executa afinal a manobra da preservação da dor a que todos nós temos direito, e que não se compadece com ritos ornamentais. É um indivíduo débil, mas tão devotado à guarda da fragilidade de um velho, que não há gladiador de Roma que arroste com a sua fúria.
Os galgos e os perdigueiros, pacientemente aguardando, abrigados pelas sombras da Torre de la Parada, a sua vez de ingressar na montaria ao javali, manifestam a negligência dos grandes áulicos, sempre prontos a receber ordens, e a delas se desempenhar com uma descrição que é nota de respeito, e nunca de desdém. Já o sabujo que se senta à beira de Filipe IV, ascendido a uma dimensão donde apenas o fim terreno o desalojará, cobra a serenidade que o dispensa de efectivas funções, excepto a de posar assim para o retrato de Diego Rodríguez da Silva Velázquez, meio na penumbra, constantemente presente.
Os infantes pequenos beneficiam de uma escolta que, consagrando o império da infância, a encara como uma invulnerabilidade à inteligência dos clássicos irracionais. Baltasar Carlos, incapaz ainda de manobrar a carabina com que o retratista o armou, consente em que a seus pés adormeça um molosso enorme, isto por se encontrar ciente dos impenetráveis sonhos em que são cúmplices. E o mínimo Filipe Próspero, tão pelém que no rosto se lhe adivinha a letal gadanha que anda a rondá-lo, só com o maltês caprichoso, habituado à altura dos cadeirões, aceita dividir os seus choros e as suas birras.
Os cães de Velázquez celebram uma interioridade preciosa, mais afeita às caseiras noites de Inverno do que às tardes de domingo dos centros comerciais. Desaparecidos todos, tendo ascendido a um plano tão incontável como indiscutível, partilham com o saudoso Timmy essa sabedoria dourada a que em exclusivo acedem os que em definitivo entenderam já aquilo que equivale a ser. E até isso lhes agradecemos, até isso lhes invejamos.

Mário Cláudio
Expresso
2006

quarta-feira, 25 de julho de 2007

O teu cão morre

é atropelado por uma carrinha.
encontra-lo na berma da estrada
e enterra-lo.
sentes-te mal com isso.
sentes-te mal por ti mesmo,
mas sentes-te pior pela tua filha
porque era a sua mascote
muito adorada.
ela costumava embalá-lo
e deixá-lo dormir na sua cama.
escreves um poema sobre o assunto.
chamas-lhe um poema para a tua filha,
sobre o atropelamento do cão por uma carrinha
e o modo como cuidaste dele,
o levaste para o bosque
e o enterraste fundo, fundo,
e o poema resulta tão bem
que quase te alegras por o cão
ter sido atropelado, de outro modo
nunca terias escrito esse bom poema.
então sentas-te para escrever
um poema sobre escrever um poema
acerca da morte do tal cão,
mas enquanto o escreves
ouves uma mulher gritar
o teu nome, o teu primeiro nome,
ambas as sílabas,
e o teu coração pára.
passado um minuto, continuas a escrever.
ela volta a gritar.
perguntas-te quanto tempo pode isto durar.

Raymond Carver

Tradução e oferta de Rute Mota.

terça-feira, 24 de julho de 2007

ADAM & THE ANTS - «Dog Eat Dog»

UIVOS

Passam os dias e os anos, a vida corre
e a gente não sabe por que vive...
Passam os dias e os anos, a morte chega
e a gente não sabe por que morre.
E um dia o homem põe-se a chorar sem mais nem menos,
sem saber por que chora...
e o que significa uma lágrima.
E tão-pouco alguém por si o sabe.
E quando mais tarde a gente abala para sempre,
sem saber quem é
nem o que veio cá fazer...
pensa que talvez tenha vindo apenas chorar
e uivar como um cão...
pelo cão de ontem que se foi,
pelo cão de amanhã que virá
e partirá também sem saber para onde
e por todos os pobres cães mortos do mundo.
Porque: não é o homem um pobre cão perdido e solitário sem dono e sem domicilio conhecido?...
E não pode o Homem chorar e uivar no Vento
sem mais nem menos... porque sim
como uiva o mar... Por que uiva o mar?
Senhor Arcipreste... por que uiva o mar?


León Felipe
O Sapateiro de Van Gogh (original de El Ciervo y otros poemas)
tradução de Rui Caeiro
&etc, 1993


Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO E O FRASCO

«-- Meu lindo cãozinho, meu bom cãozinho, meu querido totó, aproxima-te e vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.»
E o cão, agitando a cauda, o que é, creio eu, nestes pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e pousa curiosamente o focinho húmido sobre o frasco desarrolhado; depois, recuando com repentino receio, ladra voltado para mim, à maneira de censura.
«-- Ah! cachorro execrável, se eu te houvesse presenteado com um pacote de excrementos, tê-lo-ias farejado com delícia e talvez devorado. Assim, também tu, indigno companheiro da minha triste vida, és semelhante ao público, ao qual nunca se podem apresentar perfumes requintados que o exasperam, mas sim porcarias cuidadosamente escolhidas.»

Charles Baudelaire
O Spleen de Paris
Trad. António Pinheiro Guimarães

OS GUIZOS DO CÃO DE CAÇA

(Lo Leng)

1.
Cão de caça faz lim! lim!
Seu dono é belo e bem feito

2.
Tem o cão duas argolas;
Belas suíças tem o dono.

3.
Leva o cão dupla coleira;
Linda barba leva o dono.


Livro dos Cantares
tradução de Joaquim A. Guerra, S. J.
1979


Oferecido por Rui Almeida.

NO MATO É MORTO UM VEADO

No mato é morto um veado,
Coberto de juncos brancos:
Há uma rapariga em flor
Um belo homem a seduz.

No bosque troncos de carvalho,
No mato, morto, um veado:
Com juncos brancos, ata-o bem.
Lá está ela – bela como jade!

«Devagarinho – gentilmente!
Não estrague a faixa – à cintura,
Não faça ladrar o cão!»


Livro dos Cantares
in Uma Antologia de Poesia Chinesa
tradução de Gil de Carvalho
1989


Oferecido por Rui Almeida.

A HARMONIA

A certo momento pararam. O cão ensanguentado gania. Mas não estava morto.
(Somos todos irmãos, irmãos.)

Vamos supor que se chamava Maria e era uma mulher má e falsa. Um dia, de noite, sem perceber porquê, tinha dois homens à sua volta. Foi agarrada, atirada ao chão, violada.
Maria chegou a casa e nada conseguiu dizer. A sua irmã chorava. Maria tinha os olhos vermelhos, o corpo negro, tremia, não conseguia falar. Sangue na roupa.
E por Maria - que era mulher má, sempre fora intriguista, falsa - por ela choraram certas pessoas. Cinco pelo menos (que eu contei): a irmã, a mãe, o pai, uma rapariga (por vezes falavam); e uma outra pessoa que nunca até hoje se viu.
Que me importam os cães? Um animal é tanto ou menos que uma máquina e na luta dos dois que vença o melhor. Bater num cão é o mesmo que espancar uma máquina. Que adianta, que maldade é essa?
O acaso e as circunstâncias. É o destino, o cruzamento entre o acontecimento e um homem, que amplia ou não o reino da banalidade. Pouco depende do homem - quase tudo é importo pelo dia, pelas suas exigências de causas quase sempre obscuras.
E o único fenómeno estranho ao instinto de sobrevivência que manda em qualquer pessoa, animal ou anjo que exista, é o amor. Mas o amor é tão popular entre os vivos que se tornou num sentimento da multidão: há que receá-lo como se receia a palavra de ordem de qualquer ajuntamento exaltado.
O cão pode ser visto como música equilibrada (harmonia é a palavra) devido às suas quatro patas (como uma mesa orgânica). Mas se ao cão se cortar uma das patas a nossa vida altera-se, e sangra tudo, como quem é traído por uma mulher ou pela morte do pai.

Gonçalo M. Tavares
Água, Cão, Cavalo, Cabeça
2006

segunda-feira, 23 de julho de 2007

ELVIS PRESLEY: HOUND DOG

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O MAPA DA RETINA

10. (reportagem 1)

Vi um galgo de vidro.
Atravessa o hall do hotel.
Ouço ainda o seu des-
compassado latido,
à chuva. Um galgo lácteo?
Em que tromba de água
nos iguala ensurdecer?
Olhar é já unir? T' resa,
digo: e uma transparência
soterra a minha pele.
Vi o galgo de vidro
atravessar o hall do hotel?
Danos que é preciso ter em conta.


António Cabrita
Os Abysmos da Mão
Íman, 2001

Oferecido por Rui Almeida.

CÃO ANDALUX

Uma mulher não pode andar à noite
na rua que é logo convidada
por um lacaio do real
para a mais baixa repressão
espiritual

E eu disse que sim
que o meu cão precisava
de conhecer outras pessoas
outras culturas
individuais apesar do instinto
me avisar

Que não há melhor
que a língua dum cão
a lamber-nos as entranhas
e seduzi-o até casa
e amarrei-o à cama
e soltei-lhe o meu cão
Andalux


Maria da Inquietação Fausto
Macacos me mordam
Edições Mortas, 1995


Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO

O cão vive do lixo
O pêlo suja o chão

Fala-se do homem
Que vive na sarjeta
Do cão que suja

Move-se nas patas
Cansadas
Ladra forte
Do cheiro e do fumo

Nos olhos os dentes
Afiados
E a língua suada

A lua que a espuma
Faz na boca
E o tempo sacia
São minutos longos
E absurdos...

É dócil o cão
E o entardecer


Rui Carlos Souto
Cinco Luas e Um Navio
Edições Mortas, 2002

Oferecido por Rui Almeida.

terça-feira, 10 de julho de 2007

segunda-feira, 9 de julho de 2007

CÃO DE MORTO

Contarei as sílabas, depois os versos
Até catorze, a ninguém direi que morreu;
Serei parco em imagens, procurarei
A intensidade da canção primitiva.
A ninguém direi que dentro de mim morreu;
Fingirei que existe ainda algo
Belo por escrever. Inventarei frases
Com a memória dos que sentem ainda.
Um pouco de interesse me resta, vida
Também, ainda que não a solicite muito;
Quase não leio e já suporto só
Alguns romancistas americanos.
Contarei sílabas, acentos, histórias,
Mas a ninguém revelarei o meu embuste.

José Ángel Cilleruelo
Trad. Joaquim Manuel Magalhães
Trípticos Espanhóis 2.º
2000

O CÃO

O acaso amputou
uma das pernas do cão.
Manco
ele caminha pelo vazio
na intimidade da morte.
Na oquidão
de sua pata
há outra:
carne de ar
ferida de brisas.
Na inexistência
de sua perna
há o vazio somente
osso do etéreo
raiz do vento.
O poema amputou
o ganido do cão.
A palavra não consegue ressoar
a lancinante dor de seu grito.
A palavra é pouca demais
ante o destino do cão
é mera redundância
ante as pegadas de sua invalidez.
O poema é resquício
deserto de vida
ante o real mais denso.
Na verdade
o poema teve a perna amputada
pela ternura daquele cão.

Alexandre Bonafim
Biografia do deserto
2006

COMPÊNDIO DE HISTÓRIA

A João Augusto Oliveira Freire

há um coração
mas não quero rasgar o poema

tardes lentas
sol a pino
sexo de meninos
(abraços quentúmidos)
allons enfants de la patrie

um quintal na província
um quintal no prelo

quem senão meu silêncio
veio tecendo
o palpável dessa memória?

e se
na luta com as palavras
entre lobo e cão me coloco
- sou do signo de gêmeos

poeta (como tal)
o que me ensino
senão o futuro da memória
?

Júlio Castañon Guimarães
Poesia Brasileira do Século XX
Antígona

domingo, 1 de julho de 2007


Joel-Peter Witkin, Dog on a Pillow, 1994.

O ELEFANTE, O CÃO... (fragmento)

Distingamos para começar uma virtude real e uma virtude falsa, ao compararmos o elefante e o cão, dos quais um é o emblema da amizade nobre e o outro o da falsa amizade.

1.º - A amizade. É nobre no elefante: está sempre conciliada com a honra. Não tem a baixeza do cão, o qual, espancado às vezes em motivo, nunca guarda rancores. O elefante suporta os castigos justos, mas sem motivo não se deixa maltratar; nunca perdoa as ofensas; quanto ao resto, a sua amizade é tão inalterável e tão devotada como a do cão. Esta amizade nobre é a mesma que leva às uniões colectivas e corporativas, enquanto a servil amizade do cão apenas favorece o despotismo, o regime civilizado e bárbaro que não tem nada a ver com aqueloutro onde reinariam as paixões nobres, tais se podem observar no elefante. Os déspotas gostam da amizade do cão, que, maltratado injustamente e aviltado, mesmo assim serve e ama quem o ofendeu.

2.º - O amor. No elefante é decente e fiel; é escandaloso e criminoso no cão, que em amor é o mais ignóbil dos quadrúpedes, aliando a esta paixão todos os vícios, tal como sucede entre os civilizados, cujos amores sãp dominados pela astúcia, a fraude, a opressão.

3.º - A paternidade. No elefante é judiciosa e digna. Não quer criar filhos que possam vir a ser infelizes, e abstém-se da procriação se for escravizado. É uma lição que dá aos civilizados, assassinos dos seus filhos, devido a quantidade em que procriam sem a certeza de lhes assegurarem o bem-estar. A moral ou a teoria da falsa virtude aconselha-os a fabricar carne para canhão, formigueiros de arregimentados que, por causa da miséria, se vêem obrigados a vender-se. Essa paternidade imprevidente é falsa virtude, egoísmo no prazer. Por isso, a natureza preservou desse vício o elefante, que é o tipo das quatro paixões afectivas, tomadas num sentido verdadeiramente social e, no geral, capaz de convir às uniões. O cão, emblema de falsas virtudes, é dotado dessa falsa paternidade que engendra formigueiros, ninhadas de onze (o primeiro dos números anti-harmónicos) amontoados, em que três quartos hão-de perecer pelo ferro, à dentada e à fome.

Charles Fourier
Tradução de Manuel João Gomes

MANUAL DE CIVILIDADE PARA MENINAS (fragmento)

Pôr mel entre as pernas para se fazer lamber por um cãozinho é, em rigor, permitido; mas não é preciso fazer o mesmo ao cão.
Pierre Louÿs
Tradução de Júlio Henriques

RECOMENDAÇÕES AOS CRIADOS (fragmento)

Não compareçais nunca sem terdes sido chamados três ou quatro vezes, pois só os cães é que comparecem logo ao primeiro assobio; e se o patrão disser «Quem está aí?» nenhum criado tem nada que comparecer, porque quem está aí não é nome de gente.

Jonathan Swift
Tradução de Manuel João Gomes

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