Antologia de textos com cães dentro.

sábado, 20 de dezembro de 2008

A SIBERIANA


Tenho um favor para te pedir", disse Deus
O cão não disse nada mas cheirou a contentamento e Deus apercebeu-se que nos seus pensamentos, o animal O considerava "o Grande e Odorífico Pai de todas as Matilhas".
" Queres cumprir uma missão na Terra? Eu sei que não é agradável, mas há alguém que precisa de consolo na aflição, quem sabe se de um Anjo da Guarda?"
O cão abanou a cauda suavemente, havia nele curiosidade e um leve odor de receio. Depois levantou-se decidido, deu um pequena volta a guardar memórias das flores e das minúsculas árvores, bebeu um gole na cascata, abanou uma vez mais a cauda em frente ao monge budista e dirigiu-se para a porta onde se sentou à espera.
Deus transformou-o um pouco, deu-lhe a idade apropriada, uma forma indecisa, vagamente de perdigueiro, toco-lhe por um instante no focinho e acompanhou-o a uma das múltiplas portas para a Terra. Umas almas vinham a subir, Deus saudou-as, e encaminhou-as para Pedro que, nos primeiros momentos de eternidade os acompanhava.
Depois ficou a ver.
Maria da Luz ia pela rua abaixo, quase a entrar no carro
Deus aproveitou para dar uma endireitadela numa peça do Amarelinho que estava prestes a partir-se, fez recuar mais duas ou três no tempo para ficarem como novas
Um perdigueiro de olhos sábios mas alegres
"Terá dois meses"? ouviu-a interrogar-se, " de quem será?"
E uma vizinha a explicar do conforto da sua janela onde secava abundante roupa interior de chamativas cores:
"Deve andar perdido, já anda aí às voltas desde manhãzinha. Parece que gostou da menina, não deixou ninguém tocar-lhe... andaram aí uns miúdos que o queriam levar..."
E o rafeiro deu à cauda agitadamente, com o corpo todo a gingar à volta de Maria da Luz e dentadinhas amorosas nos sapatos, as unhas aceradas a furar malhas nas meias de lycra..
Quando a viu baixar-se,
Para afagar, um tanto desajeitada, havia que concordar, o pequeno pedaço de cachorro orelhudo, e dizer para a vizinha
"Se alguém perguntar por ele, se faz favor, diga que sou eu quem o tem..."
Depois, enfim, pegar no refeirito ao colo para entrar com ele no Amarelinho – que pegou primeira e já não fazia aquele ruído esquisito, estranhou Maria da Luz,
Deus suspirou.

Rui da Costa Lopes
A Siberiana
Cãmara Municipal de Sintra
(Prémio Ferreira de Castro 1997)

Oferecido por Ana Gomes Ferreira.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SONETOS PARA OS AMIGOS MORTOS

III

Morreste como um cão foste abatido
Um dia frente aos olhos da tv
Que a polícia se fez co’o teu destino
Por um premeditado sei lá quê

Como um cão como um rato como um chino
Como um preto um judeu ganhão maltês
«Dispara dá-lhe cabo do cortiço»
Dizia a viril morte que te fez

Morrer completamente em todo o chão
Fez a morte de novo obra acabada
Matou duma só vez todo o teu não

E mais que tudo não te deixou nada
Pra levares contigo no caixão
Teu último pendão e barricada

Manuel Resende
O mundo clamoroso, ainda
Angelus Novus
2004

domingo, 23 de novembro de 2008

DICIONÁRIO DO DIABO

APAZIGUAR, v. Chamar «cãozinho» a um buldogue quando este se encontra firmemente agarrado à nossa retaguarda.

CÃO, n. Uma espécie de Divindade subsidiária ou adicional, concebida para receber os excedentes da adoração mundial. Este Ser Divino, nalgumas das suas encarnações mais pequenas e macias, ocupa no coração da Mulher o lugar ao qual nenhum macho humano pode aspirar.

CÉRBERO, n. O cão de guarda do Hades, que tinha por dever proteger a sua entrada – não se percebendo claramente contra quê ou quem a guardava ele, pois toda a gente, mais cedo ou mais tarde, tinha de passar por ela, e também ninguém tinha vontade de forçar a entrada.

EFEITO, n. O segundo de dois fenómenos que ocorrem sempre juntos e na mesma ordem. Do primeiro, ao qual se chama Causa, diz-se que gera o segundo – o que é tão sensato como dizer-se que, por se ter visto um cão a perseguir um coelho, o coelho é a causa do cão.

MEDICAMENTO, n. Uma pedra atirada para o Cais do Sodré com o objectivo de matar um cão no Rossio.

RAFEIRO, n. O grau mais baixo na hierarquia dos cães.

REDUNDANTE, adj. Supérfluo; desnecessário; de trop.

Diz o sultão: «Há evidência abundante
De que este cão infiel é redundante.»
Responde o Grão-Vizir, com pose altiva:
«A sua cabeça, pelo menos, parece excessiva.»

Habeeb Suleiman

REVERÊNCIA, n. A atitude espiritual do homem perante Deus e do cão perante o homem.

ZEUS, n. O chefe dos deuses gregos, adorado pelos Romanos como Júpiter e pelos americanos modernos como Deus, Ouro, Populaça e Cão. Alguns exploradores que atingiram a costa da América, assim como um que garante ter percorrido uma distância considerável até ao interior, pensaram que estes quatro nomes designavam quatro divindades distintas; mas na sua obra monumental sobre Crenças Sobreviventes, Frumpp insiste na ideia de que os nativos são monoteístas, não tendo cada um deles qualquer outro deus que não ele próprio, o qual adora sob inúmeros nomes sagrados.

Ambrose Bierce
Dicionário do Diabo
Tradução de Rui Lopes
Tinta da China, 2006

Oferecido por Rui Almeida.

ALEGRIA BREVE

– Come!
Ele hesita, sem perceber: que faço eu ali na posição de tiro?
– Come, estupor! – berro alucinado.
Assusta-se, dá um pequeno salto de recuo. Então comovo-me, não por pena dele – pena por quem?
– Come, Médor! – repito com doçura.
Come em esperança o alimento da vida. Estamos fora do tempo e do mundo, na paragem breve ou longa para o balanço de um recomeço possível. Ninguém nos vê, tudo em nós é gratuito, separado de uma coordenação. O que se passa entre nós não tem leis que o classifiquem, um sinal que o distinga. É um acto absoluto e vazio – um acto de vida. Médor olha-me ainda, a interrogar. Olha de baixo, do fundo do seu medo e da sua estupefacção. Nesse instante-limite, tudo quanto lhe é da vida passada e futura vem à superfície aguada dos seus olhos. Quero que ele coma, não o posso matar em aflição. Espero que se decida, ponho a espingarda em descanso. O mundo espera comigo.
– Come, Médor!

Vergílio Ferreira, Alegria Breve (excerto), Lisboa: Bertrand, 7ª edição, 2004, p. 147

Oferecido por manuel a. domingos

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Eis a casa nova a prisão
disfarçada de refúgio aqui
te prendem os fios tecidos por ti
agora não podes fugir
cão solitário sem destino não é possível
devolver-te à procedência
és uma carta sem paradeiro certo
estás morto ou és endereço errado
é neste lar prisão que deves ficar
é aqui o teu último destino certo
pelo menos ninguém aqui virá
reclamar-te por teres certo valor
não tens nem o sonho de o vir a ter
a ração é feita de sons e de sonhos
de cão a enxerga de palha molhada
quando vier calor seca-te ao sol
é assim mesmo a vida de cão
solitário talvez e sem dono ou voz
de comando longínquo e cego
talvez só daqui a alguns anos
a bengala não é para te açoitar
dá o som e a cadência certa
ao cão sem dono e sem destino
irremediavelmente prisioneiro
de uma coleira com trela deslizante.

Carlos Alberto Machado
A Realidade Inclinada
Averno, 2003

Diário das Açoteias

3.

Falou-nos dos cães.
Cães lindíssimos, de língua negra – contou. Tinha-os visto. A rasgarem; a despedaçarem as vestes daqueles homens vindos de outros planetas. São de outros planetas mas lindos, lindos, lindos! A Rússia é bonita. Lá existe o nazismo. Como na Hungria. Quem manda são os ditadores e é terrível terrível terrível! Todo o mundo obedece. Todo o mundo! Eu estive na Rússia. Muitos crimes! O meu marido veio da Rússia. Trazia planos da Hungria. As línguas dos cães do mar negro são negras negríssimas! Os homens cheiram a sangue, somos todos felizes, meu Deus!, acredito em Deus!, somos todos felizes! «O Senhor é português?» - Não! Pois claro que não! O senhor é russo. O senhor é lindo! Lindo! Muito lindo!
Não receies, Glöcker. É inofensiva. Vê como sorri. Deve ter sessenta mas parece quarenta. Como sorri não obstante; apesar de tudo. Como nos volta as costas. Nada lhe interessa. Não lhe interessa. E, contudo, eis que de novo se anima; resplandece. Lado a lado do rosto, duas orelhas crescem, crescem, crescem. Uma estrela escorre-lhe da baba.
Ladra.
Ciumento, arfante, hipnotizado, o cão… repara: «Já tinhas visto uma palavra de quatro patas a abanar a cauda?»

Eduarda Chiote
A Décima Terceira Ilha
Edições Afrontamento, 1983

Oferecido por
Rui Almeida.

sábado, 15 de novembro de 2008

COMPOSIÇÃO DE LUGAR

Cerra os teus olhos, eu conto.
De manhã cedo acordado,
Abraão subiu ao monte.
E sob um céu de fornalha

viu na planura queimada
lá da banda de Sodoma
um cão a chorar por todas
as cinzas que foram casas.

O cachorro tão apócrifo
acrescenta um contraponto
a esse fumo canónico
do velho bíblico conto.

José António Almeida
A Mãe de Todas as Histórias
Averno

(excerto de) Conheces Blaise Cendrars?

(…)
O largo estava deserto. As entradas baixas das cubatas eram grandes buracos negros. Onde não se via ninguém. Como se tivessem fugido todos os habitantes. Conrado olhou à volta. Franzindo a testa.
O silêncio só era quebrado pelos ruídos cadenciados de um pilão. Que vinham da outra banda. Da floresta. Olhou para lá, interrogativamente. Nguongo Ai seguiu-lhe o gesto.
«Pilão! Tapioca!»
Percorreram todo o terreiro. Vazio de gente. Um pequeno cão cinzento, magro e coberto de feridas, atado a um pau, ladrou fracamente quando se aproximaram. Um dos soldados fingiu que lhe dava um pontapé. O animal, acovardado, fugiu. Encolheu-se à sombra.
«Não te chegues muito», disse um. «Os cães destes macacos são como os donos. Fingem que têm medo, mas, se te distrais, ferram-te logo o dente!»
(…)

Manuel de Seabra
Conheces Blaise Cendrars?
Publicações Europa-América, 1988
Oferecido por Rui Almeida.

sábado, 18 de outubro de 2008

Cão vadio

De que serve uma casa ao cão vadio? De que serve a promessa que lhe estendem, as vantagens que lhe oferecem? De que serve a esperança, vazia nas suas mãos vazias? De que serve o prato onde lhe querem dar de comer, o conforto que ignora, o gesto dedicado que recusa? De que serve o jardim com relva aparada e cães de trela que nunca terá para ele qualquer interesse? De que lhe serve companhia, ele que aprendeu o só por companheiro? De que serve a família que lhe emprestam, a posteridade que lhe acenam, ele que sabe não terá nenhuma? De que serve a felicidade de que falam, saciedade e segurança, explicam, ele talhado à forma áspera dos penhascos? De que servem fortuna, glória, aclamação nas tribunas e nos campeonatos, pêlo mais viçoso, dorso mais esbelto, inteligência, claro (jogos de frivolidade), talento, pois (jogos de eternidade). Seu é o grito das ruas sem fim, sua a morada desde sempre abolida, seu o destino de caminhar sem chegada, vizinha morte, tão cedo conhecida, a cada esquina dobrada. Era isto que esperava que lhe dessem (era isto que podia receber). Mas em vez disso dão-lhe uma casa, a promessa em que nunca coube, a esperança que as suas mãos não guardam. E ele segue e repete: cão vadio (segue e obstina: cão vadio). A mulher que o chamava do limiar da porta regressa ao interior da casa e pensa: mal agradecido. E tem razão, embora de outro modo que a razão que conhece. E é verdade, embora de outro modo que a verdade que é sua. Assim ficamos só eu e tu. E choro por ti a lágrima que a dor cegou. Choro por nós a lágrima que não sabemos. Rosto próximo, olhamo-nos nos olhos secos, boca parada na palavra por nascer. Olhamo-nos e seguimos caminho.

Jorge Roque
Broto Sofro
Averno
2008

sábado, 4 de outubro de 2008

Quero-te
como cão esfomeado
quer o osso
que só sonhando morde
pois sempre não está lá
se a mosca do destino
ao pobre impõe que acorde


Vasco Costa Marques
daqui

terça-feira, 23 de setembro de 2008

ISSA

Issa é mais malandra que o pardal do Catulo.
Issa é mais pura que o beijinho de uma pomba.
Issa é mais fofinha que todas as miúdas.
Issa é mais preciosa que as gemas da Índia.
Issa é a cadelinha mais-que-tudo do Públio.
Se geme, cuidarias que fala.
Sente a tristeza e a alegria.
Deita-se tombada no seu pescoço e adormece,
de tal maneira que nem um suspiro lhe ouves.
E, obrigada pelas exigências do ventre,
gota nenhuma ofende os lençóis,
mas com branda patinha o acorda e lhe recomenda
que a tire da cama e pede que a levante.
Tanto pudor se acha na casta cadelinha!
Ignora Vénus, e não achamos
digno marido de tão terna menina.
Não lha leve por completo a morte derradeira,
pinta-a Públio num quadro,
no qual verás tão parecida Issa
que nem ela é tão parecida consigo mesma!
Põe, pois, Issa ao lado do quadro:
ou ambas julgarás verdadeiras,
ou ambas julgarás pintadas!

Marcial, I. 109
daqui

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

JERRY, MOLLY E SAM

Na opinião de Al só havia uma solução. Tinha de se livrar da cadela sem que Betty e os miúdos dessem por isso. Durante a noite; teria de ser feito durante a noite. Apenas teria de levar Suzy no carro até... bem, até um sítio qualquer, mais tarde decidiria qual, abrir a porta do carro, empurrá-la para fora e continuar a conduzir. E quanto mais cedo melhor. Sentou-se aliviado por ter tomado aquela decisão. Qualquer decisão que tomasse seria melhor do que nenhuma, disso estava convencido.
Era domingo. Levantou-se da mesa da cozinha, onde estivera sozinho a tomar um pequeno-almoço tardio, e ficou de pé junto ao lava-loiças, com as mãos nos bolsos. Ultimamente, nada lhe corria bem. Tinha problemas mais do que suficientes para resolver sem ter que se preocupar com uma" cadela mal-cheirosa. Na Aerojet estavam a despedir pessoal, quando deviam estar a admiti-lo. Estava-se a meio do Verão, com contratos para a defesa pelo país inteiro, e a Aerojet falava em redução das despesas. De facto, estava a reduzir um pouco mais todos os dias. Ele não sentia mais segurança do que outro qualquer, apesar de estar a trabalhar lá quase há três anos. Sem dúvida que tinha boas relações com as pessoas influentes, mas nem antiguidade nem amizades serviam de nada nos tempos que corriam. Se chegasse a sua vez, pronto... não havia nada a fazer. Se decidissem despedir, despediam. Cinquenta, cem homens de cada vez.
Ninguém estava em segurança, desde os superintendentes, passando pelo capataz e acabando nos operários da linha de montagem. E há três meses, exactamente antes de começarem os despedimentos, Betty convencera-o a mudarem-se para uma casa mais cómoda, com uma renda de duzentos dólares por mês, com opção de compra. Trampa!
Al não tinha querido deixar a outra casa. Sentia-se lá suficientemente confortável. Mas quem podia adivinhar que duas semanas depois iriam começar os despedimentos? Quem é que podia adivinhar o que quer que fosse, hoje em dia? Havia o caso da Jill, por exemplo. Jill trabalhava na contabilidade da Weinstock's. Era uma garota simpática e dizia que amava Al. Sentia-se apenas sozinha, dissera-lhe na primeira noite. Nessa noite, dissera-lhe também que não tinha o hábito de se deixar engatar por homens casados. Conhecera Jill há cerca de três meses, quando andava a sentir-se deprimido e nervoso com toda aquela conversa acerca dos despedimentos. Conhecera-a no Town and Country, um bar que ficava relativamente perto da nova casa. Dançaram um pouco e depois levou-a a casa e ficaram um bocado na marmelada, no carro, em frente do apartamento dela. Nessa noite não tinha subido com ela, embora tivesse a certeza de que teria podido fazê-lo. Mas, na noite seguinte, subiu na companhia dela.
Estava agora de braços com uma ligação amorosa, Santo Deus!, e não sabia o que fazer. Não queria continuar, mas também não queria acabar com tudo: uma pessoa não atira tudo o que tem pela borda fora só porque está no meio de uma tempestade. Al sentia-se à deriva, sabia que estava à deriva, mas como tudo aquilo iria acabar era para ele uma incógnita. No entanto, começava a ter a sensação de estar a perder o controlo de tudo… das coisas. Recentemente, começara também a dar por si a pensar na velhice, depois de ter estado dias com prisão de ventre, uma situação que sempre associara com pessoas idosas. Além disso, havia a questão da pequena pelada e o facto de já ter começado a pentear-se de maneira diferente. O que é que ia fazer da sua vida?, gostaria ele de saber.
Tinha 31 anos.
Todos esses problemas a enfrentar, e ainda por cima Sandy, a irmã mais nova da mulher, ter oferecido há quatro meses aos miúdos, o Alex e a Mary, uma cadela rafeira. Desejava nunca ter posto os olhos numa cadela... ou mesmo em Sandy, para dizer a verdade. Aquela cabra! Aparecia sempre com uma merda qualquer que só acabava por lhe trazer despesas, uma bugiganga qualquer que apenas durava um dia ou dois e depois tinha de ser reparada, qualquer coisa que punha os miúdos aos berros, acabando à porrada um com o outro. Santo Deus! E depois, em troca, tentava cravar-lhe vinte e cinco ou cinquenta dólares, por intermédio de Betty. O simples pensamento de todos os cheques de vinte e cinco e cinquenta dólares e, ainda há pouco tempo, um de oitenta e cinco dólares, para a prestação do carro - do carro dela, Santo Deus!, quando ele não sabia se iria continuar a ter um tecto sobre a cabeça - dava-lhe ganas de matar o raio da cadela.
Sandy! Betty, Alex e Mary! Jill! E Suzy, a maldita da cadela!
Era esta a situação de Al.

Tinha de começar por uma ponta qualquer - pôr as coisas em ordem, fazer uma escolha radical. Era chegada a altura de fazer qualquer coisa, a altura de pensar seriamente numa mudança. E tencionava começar esta noite.
Iria aliciar a cadela para entrar no carro sem ninguém ver, e sob um pretexto qualquer, sair de casa. Contudo, não queria nem pensar na maneira como Betty iria baixar os olhos quando o visse mudar de roupa e, depois, quando estivesse mesmo a sair a porta, perguntando-lhe onde, quanto tempo, etc., numa voz resignada que o punha ainda pior. Não conseguia habituar-se a mentir. Para além disso, odiava a ideia de esgotar com Betty as poucas reservas que ainda lhe restavam, inventando uma mentira para um fim diferente daquele que ela suspeitava. Poder-se-ia dizer que era uma mentira desperdiçada. Mas não lhe podia contar a verdade: dizer-lhe que não ia para os copos, que não ia visitar ninguém e que, em vez disso, ia dar cabo da cadela e, desse modo, dar o primeiro passo no sentido de pôr a casa em ordem.
Passou a mão pelo rosto e, durante um minuto, tentou esquecer tudo. Tirou uma garrafa de cerveja Lucky do frigorífico e fez saltar a tampa de alumínio. A sua vida tinha-se tornado numa confusão, numa mentira por cima doutra, ao ponto de não ter a certeza de ser capaz de se desembaraçar delas quando fosse preciso.
- Maldita cadela! - disse ele em voz alta.
«Ela não tem o faro apurado», era o que Al costumava dizer. Além disso, era traiçoeira. Quando apanhava a porta das traseiras aberta e a casa sem ninguém, forçava a rede e atravessava a casa até à sala para urinar na alcatifa. Neste momento, havia pelo menos uma dúzia de nódoas em forma de mapa. Mas o seu sítio preferido era o quarto de arrumações, onde podia remexer na roupa suja, a um ponto tal que todas as cuecas e calcinhas tinham a parte da frente ou os fundilhos esfiapados. E roía os fios exteriores da antena de televisão. Uma ocasião em que Al entrava com o carro no acesso, encontrou-a deitada no pátio da frente com um dos seus sapatos Florsheims na boca.
«Ela é marada», costumava dizer, «e está a pôr-me marado a mim. Nem tenho tempo para substituir as coisas. Um dia destes dou cabo da filha da puta!»
Betty tolerava a cadela por períodos mais longos e, durante uns tempos, foi aceitando as coisas, aparentemente, sem se perturbar, mas, de repente, ia ter com ela, de punhos cerrados, chamava-lhe estupor, puta, e gritava com os miúdos para não a deixarem ir para o quarto de cama, para a sala, etc. Betty também era assim com os filhos. Aturava-os até um certo ponto, deixava-os abusar até um certo limite e, depois, voltava-se contra eles, selvaticamente, e esbofeteava-os, gritando: «Parem com isso! Parem com isso! Já não aguento mais!»
Mas, por outro lado, Betty dizia: «É o primeiro cão que eles têm. Deves lembrar-te como gostavas do teu primeiro cão.»
«O meu cão tinha miolos», respondia-lhe ele. «Era um setter irlandês.»

A tarde passou-se. Betty e os miúdos regressaram de qualquer lado e depois comeram todos sanduíches e batatas fritas na varanda. Ele adormeceu na relva e, quando acordou, era quase noite.
Tomou um duche, barbeou-se e vestiu umas calças e uma camisa lavadas. Sentiu-se relaxado, mas mole. Acabou de vestir-se e pensou na Jill. Pensou na Betty, no Alex, na Mary, na Sandy e na Suzy. Sentiu-se drogado.
- Vamos jantar não tarda muito - disse Betty, chegando à porta da casa de banho e olhando para ele.
- Não há pressa. Não tenho fome e está muito calor para comer - disse ele, brincando com o colarinho. - Sou capaz de me meter no carro e ir até ao Carl's jogar umas partidas de bilhar e beber umas cervejas.
Ela disse: - Estou a ver.
Ele disse: - Raios!
Ela disse: - Vai. Eu não me importo.
Ele disse: - Não me vou demorar.
Ela disse: - Já disse que não me importava. Vai lá.
Na garagem disse:
- Vão todos para o inferno! - E deu um pontapé no ancinho que foi parar ao outro lado do chão de cimento. Depois, acendeu um cigarro e tentou controlar-se. Pegou no ancinho e foi pô-lo no lugar habitual, resmungando para dentro «Ordem. Ordem», quando a cadela se aproximou da garagem, farejando junto à porta e olhando para dentro.
- Vem cá. Vem cá, Suzy! Aqui... menina bonita - chamou ele. A cadela deu ao rabo, mas não saiu do mesmo sítio.
Ele foi até à prateleira por cima da máquina de cortar relva e tirou uma, depois duas e por fim três latas de comida.
- Tudo o que quiseres, Suzy... velha amiga. Tudo o que quiseres comer - disse ele com voz aliciante, abrindo a primeira lata e deixando cair aquela porcaria dentro do prato da cadela.

Andou a dar voltas com o carro, durante quase uma hora, sem se decidir por um lugar. Se a soltasse na vizinhança e alguém chamasse a carroça dos cães, a cadela voltaria dentro de um dia ou dois. O canil distrital seria o primeiro sítio para onde Betty iria telefonar. Lembrava-se de ter lido histórias sobre cães que descobriam o caminho de casa a centenas de quilómetros de distância. Lembrava-se de programas sobre criminalidade em que um desconhecido tomava nota da matrícula do carro e esse pensamento fez-lhe saltar o coração. Apanhado com a boca na botija, seria uma vergonha ser visto a abandonar um cão, sem as pessoas terem conhecimento real dos factos. Tinha de descobrir o sítio certo.
Foi até perto do American River. De qualquer modo, a cadela precisava de sair mais vezes, sentir o vento bater-lhe nas costas, nadar e patinhar na água quando lhe apetecesse; era uma pena manter a cadela dentro de casa o tempo todo. Os campos perto do dique pareciam demasiado desolados, sem casas em redor. Afinal, ele pretendia que alguém a encontrasse e cuidasse dela. Uma velha casa de dois pisos era o que ele tinha em mente, com crianças felizes e bem comportadas e que precisassem de um cão, que precisassem desesperadamente de um cão. Mas não havia aqui nenhuma casa velha de dois pisos; nem uma.
Voltou para trás, até à auto-estrada. Não tinha sido capaz de olhar para a cadela, desde o momento em que conseguira metê-la dentro do carro. Neste momento, estava sentada, muito quieta, no banco traseiro, mas quando ele saiu da estrada e estacionou o carro, ela sentou-se muito direita e começou a ganir, olhando em volta.
Parou junto a um bar, mas, antes de entrar, abriu todas as janelas do carro. Demorou-se cerca de uma hora, a beber cerveja e a jogar shuffleboard. Não deixava de pensar se não devia também ter deixado as portas entreabertas. Quando saiu, Suzy sentou-se no banco e arreganhou os dentes.
Ele entrou e pôs-se novamente a caminho.

Então, veio-lhe à ideia o sítio ideal: o lugar onde tinham vivido anteriormente, cheio de crianças e mesmo do outro lado da linha divisória com o distrito de Yolo. Era o sítio ideal. Se a cadela fosse apanhada, levá-la-iam para o canil de Woodland e não para o de Sacramento. Não tinha mais do que levar o carro até uma das ruas do velho bairro, parar, atirar para o chão uma mão cheia da merda que a cadela comia, abrir a porta, dar uma ajudinha para empurrar e... rua com ela, enquanto se pirava. Livre! Ficaria livre.
Carregou a fundo no acelerador para sair dali para fora.
Enquanto conduzia, passou por alpendres iluminados e em três ou quatro casas viu homens e mulheres sentados nos degraus da frente. Conduzindo lentamente, passou pela sua antiga casa, afrouxando a marcha até quase parar, e olhou para a frontaria, para o alpendre e para as janelas iluminadas. Sentiu-se ainda mais irreal. Tinha vivido ali... quanto tempo? Um ano? Dezasseis meses? Antes, tinha sido em Chico, Red Bruff, Tacoma, Portland - onde conhecera Betty -, Yakima... Toppenisch, onde nascera e estudara. Parecia-lhe que, desde que fora criança, não sabia o que significava não ter graves preocupações. Lembrou-se dos verões em que pescava e acampava nas Cascades, nos Outonos em que costumava caçar faisões, seguindo as pisadas de Sam, o setter que com o seu pêlo vermelho parecia um farol no meio dos milheirais e dos campos de alfalfas, onde o rapaz que fora e o cão que tivera corriam como loucos. Esta noite sentia um enorme desejo de conduzir, de conduzir até Toppenish, de entrar na velha rua principal empedrada a tijolo, virar à esquerda, no primeiro semáforo, de novo à esquerda e parar quando chegasse à casa onde a mãe vivia e nunca mais, por motivo nenhum, voltar a sair.
Chegou ao fundo escuro da rua. Em frente havia um grande descampado e a rua virava à direita, contornando-o. Durante quase um quarteirão não havia casas do lado da rua junto ao descampado, e apenas uma casa mergulhada na escuridão total do outro lado. Parou o carro e, sem pensar duas vezes no que estava afazer, pegou numa mão cheia de comida de cão, inclinou-se no banco, abriu a porta traseira do lado do descampado, atirou aquela coisa para o chão e disse: - Apanha, Suzy! - Empurrou-a até ela saltar contrariada do banco. Inclinou-se ainda mais, fechou a porta com um puxão e, lentamente, começou a conduzir. Depois desatou a conduzir cada vez mais depressa.

Parou no Dupee's, o primeiro bar que encontrou no regresso a Sacramento. Estava agitado e a transpirar. Não se sentia exactamente desoprimido ou aliviado, como pensava que iria sentir-se. Mas continuou a assegurar a si próprio que fora um passo na direcção certa e que no dia seguinte começaria a sentir-se melhor. Era uma questão de esperar.
Depois de já ter bebido quatro cervejas, uma garota com uma camisola de gola alta e de sandálias, transportando uma mala de viagem, sentou-se ao seu lado. Colocou a mala entre os bancos. Parecia conhecer o empregado do bar, que lhe dizia sempre qualquer coisa quando passava, parando por pouco tempo, uma ou duas vezes, para dois dedos de conversa. Ela disse a Al que se chamava Molly, mas não o deixou pagar-lhe uma cerveja. Em vez disso, propôs-lhe que dividissem uma pizza a meias.
Ele sorriu-lhe e ela retribuiu o sorriso. Ele tirou os cigarros e o isqueiro do bolso e pô-los em cima do balcão.
- Vamos lá a essa pizza! - disse ele. Mais tarde, perguntou-lhe:
Posso levá-la de carro a qualquer lado?
- Não, obrigada. Estou à espera de alguém - disse ela.
Ele perguntou:
- Para onde é que vai?
Ela respondeu:
- Para lado nenhum. Oh! - disse ela rindo e tocando na mala com o dedo do pé - refere-se a isto? Eu vivo aqui, em West Saco. Não vou a lado nenhum. Isto é apenas o motor da máquina de lavar da minha mãe. Jerry, o empregado do bar, tem jeito para estas coisas. Disse que ia repará-la de graça.
Al levantou-se. Desequilibrou-se um pouco enquanto se inclinava para ela e disse:
- Bem, adeus amor. Até à próxima.
- Podes crer - disse ela. - E obrigada pela pizza. Ainda não tinha comido nada desde o almoço. Estou a tentar perder um pouco disto. Levantou a camisola e agarrou uma mão cheia de carne, à volta da cintura.
- Tens a certeza de que não queres uma boleia? – disse ele.
A rapariga sacudiu a cabeça.
De novo no carro, enquanto conduzia, ia pegar nos cigarros, só então se lembrou de que deixara tudo em cima do balcão. Que se lixasse - pensou -, ela que ficasse com tudo. Ela que metesse os cigarros e o isqueiro dentro da mala, juntamente com a máquina de lavar. Registou aquilo contra a cadela: mais uma despesa, mas a última, graças a Deus. Agora que as coisas estavam a ficar em ordem, sentiu-se zangado por a garota não ter sido mais amável com ele. Se estivesse noutro estado de espírito, podia tê-la engatado. Mas quando uma pessoa está deprimida está-lhe escrito na cara, até mesmo pela maneira como acende um cigarro.
Decidiu ir visitar Jill. Parou numa loja de bebidas, comprou uma garrafa de quartilho de uísque, subiu as escadas até ao apartamento dela, parou no patamar e passou a língua pelos dentes. Ainda sentia o gosto dos cogumelos da pizza na boca e tinha a garganta seca. Apercebeu-se de que aquilo que lhe apetecia fazer era ir direito à casa de banho de Jill e usar a escova de dentes dela.
Bateu à porta.
- Sou eu, Al - sussurrou. – Al - repetiu em voz mais alta.
Ouviu o barulho dos pés dela no chão. Ela abriu o fecho de segurança e tentou puxar a corrente, enquanto ele se apoiava pesadamente contra a porta.
- Só um momento, amor. Al, não empurres... não consigo abrir. Consegui - disse ela, abrindo a porta e estudando o rosto dele, enquanto lhe segurava a mão.
Abraçaram-se desajeitadamente e ele beijou-a na face.
- Senta-te, amor. Aqui. - Ela ligou o candeeiro e ajudou-o a sentar-se no sofá. Depois levou os dedos aos rolos do cabelo e disse: - Vou pôr um pouco de bâton. Entretanto, o que é que queres beber? Café? Sumo? Uma cerveja? Acho que tenho cerveja. O que é que trazes aí... uísque? O que é que te apetece, amor? - Ela acariciou-lhe o cabelo com a mão e inclinou-se para ele, olhando-o intensamente nos olhos. - Pobrezinho, o que é que te apetece? - perguntou, de novo.
- Só me apetece que me abraces - disse ele. - Senta-te aqui. Nada de bâton - disse ele, puxando-a para o colo. - Abraça-me. Estou a cair - disse ele.
Ela passou-lhe o braço pelos ombros e disse:
- Vem para a cama, querido. Vou-te dar aquilo que tu queres.
- Vou dizer-te uma coisa, Jill - disse ele -, é como patinar sobre uma fina camada de gelo. A qualquer momento vou parti-la... não sei. - Olhou para ela com uma expressão fixa, esbaforida, da qual tinha consciência mas que não era capaz de alterar. - Estou a falar a sério - disse ele.
- Não penses em nada, amor - disse ela, abanando a cabeça. - Relaxa-te - disse ela. Segurou-lhe no rosto e beijou-o na testa e depois nos lábios. Voltou-se levemente no colo dele. - Não, não te mexas, Al- disse ela, passando-lhe subitamente as duas mãos à volta da nuca e agarrando-lhe a cara ao mesmo tempo. Os olhos dele vaguearam um instante pela sala e depois tentaram fixar-se no que ela estava a fazer. Ela manteve-lhe a cabeça direita, segurando-a entre os dedos fortes. Com as unhas dos polegares estava a espremer um ponto negro ao lado do nariz dele.
- Não te mexas - disse ela.
- Não - disse ele. - Não. Pára com isso! Não estou com disposição para isso.
- Está quieto. Quieto, disse eu! Já está. Olha só! O que é que achas, disto? Não sabias que tinhas isto, pois não? Agora só mais um, amor; um enorme. É o último - disse ela.
- Casa de banho - disse ele, obrigando-a a levantar-se e a deixar-lhe o caminho livre.

Quando chegou a casa, eram só lágrimas, confusão. Mary correu para o carro, a chorar, ainda antes de ele ter parado.
- A Suzy desapareceu - soluçou ela. - A Suzy desapareceu… nunca mais vai voltar, papá. Ela foi-se, Tenho um pressentimento.
«Meu Deus, o que é que eu fui fazer?», pensou ele com o coração aos saltos.
- Não te aflijas, querida. Provavelmente ela foi dar um passeio, aqui perto. Vai voltar -disse ele.
- Não vai, papá, eu sei que não vai. A mamã disse que talvez tenhamos de arranjar outro cão.
- E isso não te agradava, querida? - perguntou ele.
…outro cão, se a Suzy não voltar? Vamos a uma loja de animais...
- Eu não quero outro cão! - gritou a criança, agarrada à perna dele.
- Podemos ter um macaco em vez dum cão, papá? – perguntou Alex. -Se formos à loja à procura dum cão, não podemos comprar um macaco em substituição?
- Não quero um macaco! -choramingou Mary. - Quero a Suzy.
- Vamos lá acabar com isto! Deixem o papá entrar em casa. O papá tem uma horrível, uma horrível dor de cabeça - disse ele.
Betty tirou um pirex de cima do fogão. Parecia cansada, irritável... mais velha. Não olhou para ele.
- Os miúdos contaram-te? Que a Suzy fugiu? Passei a zona a pente fino. Procurei por todo o lado, juro - disse ela.
- A cadela vai aparecer - disse ele. - Deve andar a passear por aí. A cadela vai aparecer -disse ele.
- Falando a sério - disse ela, voltando-se para ele com as mãos na cintura -, acho que aconteceu outra coisa qualquer. Acho que talvez tenha sido atropelada. Gostava que fosses dar uma volta de carro. Os miúdos chamaram-na a noite passada e nessa altura já tinha fugido. Nunca mais foi vista. Telefonei para o canil e dei-lhes a descrição, mas disseram-me que ainda faltavam chegar alguns camiões com cães. Fiquei de telefonar novamente amanhã de manhã.
Ele foi para a casa de banho e continuou ainda a ouvi-la a falar. Começou a encher o lavatório com água, perguntando a si mesmo, e sentindo uma coisa esquisita no estômago, até que ponto o seu erro tinha sido grave. Quando fechou as torneiras continuou a ouvir a voz dela. Não tirou os olhos do lavatório.
- Ouviste o que eu disse? - gritou ela. - Quero que vás procurá-la de carro, depois do jantar. Os miúdos podem ir contigo e ajudar a procurá-la... Al?
- Sim, sim - respondeu ele.
- O quê? - perguntou ela. - O que é que disseste?
- Disse que sim. Sim! Está bem. Como quiseres. Deixa-me lavar primeiro, está bem?
Ela olhou da cozinha.
- Afinal, que bicho te mordeu? Não te pedi que apanhasses uma bebedeira a noite passada, pois não? Estou farta, deixa-me dizer-te! Se queres saber, tive um dia infernal. O Alex acordou às cinco da manhã para se meter na cama comigo, a dizer que o papá estava a ressonar tão alto que... que o assustaste. Eu vi-te lá no quarto, a dormir com a roupa vestida e cheirando que tresandavas. Deixa que te diga, estou farta! - Olhou rapidamente à volta da cozinha, como se fosse agarrar em qualquer coisa.
Ele fechou a porta com um pontapé. Estava a ir tudo por água abaixo. Enquanto se barbeava, parou uma vez, agarrou na lâmina e olhou para a sua imagem ao espelho: o rosto embaciado, sem carácter... imoral, era a palavra certa. Pousou a lâmina de barbear. «Acho que cometi o pior erro da minha vida. Acho que cometi o pior erro de todos.» Levou a lâmina ao pescoço e acabou de se barbear.

Não tomou duche, nem mudou de roupa.
- Põe o meu jantar no formo. Ou no frigorífico. Já! - disse ele.
- Podes esperar até depois do jantar. Os miúdos podem ir contigo.
- Não. Que se lixe. Deixa os miúdos jantarem e, se quiserem, procurarem por aqui à volta. Não tenho fome e não tarda a escurecer.
- Estão todos a perder o juízo? - disse ela. - Não sei o que nos vai acontecer. Estou à beira duma depressão nervosa. Estou quase a dar em louca. O que é que vai acontecer às crianças se eu ficar louca? - Deixou-se cair sobre o escorredouro da loiça, o rosto enrugado e as lágrimas a correrem pela cara abaixo.
- De qualquer maneira, não gostas deles. Nunca gostaste! Não é a cadela que me preocupa... somos nós! Eu sei que já não me amas - raios te partam! - mas nem ao menos gostas das crianças.
- Betty, Betty! - disse ele. - Meu Deus! Vai correr tudo bem, prometo - disse ele. - Não te preocupes. Prometo-te que as coisas vão correr bem. Vou encontrar a cadela e as coisas vão correr bem - acrescentou ele.
Saiu disparado de casa e escondeu-se rapidamente por detrás dos arbustos, quando ouviu os miúdos aproximarem-se: a garota a chorar e a dizer «Suzy, Suzy» e o rapaz a dizer que talvez ela tivesse sido apanhada por um comboio. Quando voltaram a entrar em casa, ele correu para o carro.
Mostrou-se inquieto em todos os semáforos em que teve de parar, sentindo um ressentimento amargo quando parou para meter gasolina. O Sol estava baixo e pesado, mesmo por cima da atarracada cordilheira de colinas ao fundo do vale. Na melhor das hipóteses, tinha uma hora de luz.
Viu a sua vida, daqui em diante, como uma completa ruína. Mesmo que vivesse mais cinquenta anos, do que duvidava, nunca iria esquecer o facto de ter abandonado a cadela. Sentiu que, se não encontrasse a cadela, tinha chegado ao fim. Um homem que era capaz de se desfazer dum cão não prestava para nada. Esse tipo de homem era capaz de tudo, de não se controlar perante nada.
Remexeu-se no banco, não tirando os olhos da face inchada do Sol que se ia pondo por detrás das colinas. Sabia que a situação era agora irremediável, mas não podia fazer nada. Sabia que tinha de reaver a cadela a todo o custo, da mesma maneira que, na noite anterior, soubera que tinha de a abandonar.
«Eu é que estou a dar em louco», disse para consigo próprio, acenando com a cabeça num gesto de concordância.

Desta vez, entrou pelo lado oposto, junto ao campo onde a tinha largado, alerta a qualquer sinal de movimento.
- Deus queira que ainda aqui esteja - disse ele.
Parou o carro e começou a pesquisar o campo. Depois, lentamente, recomeçou a conduzir. No caminho de entrada para a casa solitária estava estacionada uma carrinha com o motor desligado, e ele viu uma mulher bem vestida, de saltos altos, sair pela porta da frente acompanhada por uma miudinha. Olharam quando ele passou. Mais adiante, virou à esquerda, os olhos a perscrutarem os quintais de ambos os lados, tão longe quanto a vista alcançava. Nada. A um quarteirão de distância estavam dois garotos com as bicicletas encostadas a um carro parado.
-Olá - disse ele para os rapazes, enquanto parava o carro mais à frente. - Vocês viram hoje qualquer coisa parecida com um cachorrinho branco por estes lados? Qualquer coisa parecida com um cão branco felpudo? É que eu perdi um assim.
Um dos rapazes limitou-se a olhar para ele. O outro disse:
- Eu vi uma quantidade de miúdos a brincarem com um cão hoje à tarde, ali adiante. Na rua ao lado desta. Não sei de que raça era o cão. Talvez fosse branco. Era uma quantidade de miúdos.
- Okay, certo. Obrigado - disse Al. - Muito e muito obrigado. Virou à direita, no fundo da rua. Concentrou-se na rua em frente.
O Sol já se tinha posto. Estava quase escuro. Casas lado a lado, árvores, relvados, cabinas telefónicas, carros estacionados... tudo aquilo lhe pareceu sereno, tranquilo. Ouviu uma voz de homem a chamar os filhos, viu uma mulher de avental aparecer à porta iluminada da casa.
Ainda terei alguma possibilidade? - disse Al. Sentiu lágrimas nos olhos. Estava espantado. Não pôde evitar um sorriso e abanou a cabeça, enquanto tirava um lenço do bolso. Depois, viu um grupo de crianças a descer a rua. Acenou com o braço para lhes chamar a atenção.
- Vocês viram um cachorrinho branco? - perguntou-lhes Al.
Oh, claro - disse um dos rapazes. - O cão é seu?
Al acenou a cabeça.
- Estivemos a brincar com ele há cerca dum minuto, ao fundo da rua. No quintal do Terry. - O rapaz apontou com o dedo. - Ao fundo da rua.
- O senhor tem filhos? - perguntou uma garota.
- Tenho - disse Al.
- O Terry diz que vai ficar com ele. Ele não tem cão - disse o rapaz.
- Olha que não sei - disse Al. - Acho que os meus filhos não iriam gostar. O cão é deles, só que se perdeu - disse Al.
Desceu a rua com o carro. Já estava escuro, era difícil ver e ele começou a entrar em pânico outra vez, praguejando silenciosamente. Amaldiçoou-se por ser um cata-vento, sempre a mudar de ideias; uma coisa neste momento, outra no seguinte.
Foi então que viu a cadela. Percebeu que já há algum tempo que estava a olhar para ela. A cadela movia-se lentamente, farejando a relva junto à vedação. Al saiu do carro, atravessou o relvado, inclinado para a frente, chamando: «Suzy, Suzy, Suzy.»
A cadela parou quando o viu. Levantou a cabeça. Ele baixou-se de cócoras e ficou à espera, de braço estendido. Olharam um para o outro. Ela deu ao rabo, em sinal de saudação. Estendeu-se ao comprido, com o focinho entre as patas. Ele ficou à espera. Ela levantou-se. Deu a volta à vedação e perdeu-se de vista.
Ele ficou ali sentado. Pensou que, bem vistas as coisas, não se sentia muito mal com a sua consciência. O mundo estava cheio de cães. Havia cães e havia cães. Com alguns cães não havia nada a fazer.


Raymond Carver
Queres Fazer o Favor de te Calares
trad. Carlos Santos
Teorema
2004

Bukowski

"É uma pena os cães não irem para o céu," disse o Frank.
"Porquê?"
"Tens que ser baptizado para ir para o céu."
"Devíamos baptizá-lo."
"Achas?"
"Ele merece uma hipótese de ir para o céu."
Peguei nele e entrámos na igreja. Levámo-lo à pia baptismal e peguei nele enquanto o Frank o borrifava na testa com água.
"Eu te baptizo," disse o Frank.
Levámo-lo para fora e colocámo-lo no chão outra vez.
"Até parece que está diferente", disse eu.

Charles Bukowski, Ham on Rye, Ecco: New York, 2002
versão de manuel a. domingos

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A TODOS O QUE É DE CÉSAR

João César Monteiro

terça-feira, 29 de julho de 2008

Que claro ser o desta pedra
que abandonada ao sol
nem sequer se revolta ou estremece.
Quando passo junto dela,
porém, escuto os seu latidos.

Sei que dentro dorme um cão,
um nardo, a vulva, o anjo.

Manuel Moya, Quarto Com Ilhas, Livrododia.
Tradução de Rui Costa


Oferecido por manuel a. domingos.

terça-feira, 8 de julho de 2008

ANTES - DEPOIS

Antes vã grandeza
de coroas ornada
depois a nudez
por ninguém tapada.

Antes em trovões,
em êxtase e fumo,
depois as razões:
podias mas como?

De ilusões inanes,
fim. Diz sem calor:
Domini canes -
cães do Senhor.

Gottfried Benn
50 Poemas
Trad. Vasco Graça Moura

segunda-feira, 7 de julho de 2008

CÃO

O facto de o cão ser fiel ao homem não quer dizer que ele aprove as acções do dono.

(Carlos Drummond de Andrade; citado em Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, número 2 – Julho/Setembro 1998)

Oferecido por Rui Almeida

Não sei ladrar

Estou a lavar o chão da cozinha
como se tivesse quatro patas,
na posição de cão.
Alcanço
por um momento
o bom humorde cão.

É pena, só não consigo
ladrar.

Anna Swir
versão de LP
Talking to my body
tradução de Czeslaw Milosz e Leonard Nathan
Copper Canyon Press
Washington, 1996, p. 117

sábado, 28 de junho de 2008

JOSÉ

Vi, no teu rosto de cão,
o amor que pouco vi no rosto dos homens.
Às vezes,
a meio das noites,
a meio da extrema solidão da minha vida,
era como se tivessem descido à terra
quatro astros emudecidos,
e então,
como silenciosas gotas nascidas no céu,
caíam duas lágrimas dos teus olhos,
da sua bondade,
do seu assombro,
e ali, debaixo das luas que iluminam o mundo,
tu adormecias,
sem qualquer rumor nas pálpebras e na cauda,
como se ouvisses junto aos altares pagãos,
as canções de uma alma doente,
na primavera dos cães

José Agostinho Baptista

Sugerido pelo Rui Almeida.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A cachorrinha

Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!

Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?

Vinicius de Moraes

Oferecido por Renata Gonçalves.

quinta-feira, 19 de junho de 2008


Albrecht Dürer

quarta-feira, 18 de junho de 2008

O cão de Dürer

O cavaleiro, quem sabe, volta de uma guerra, a dos Sete Anos, a dos Trinta Anos, a da Duas Rosas, a dos Três Henriques, uma guerra dinástica ou religiosa, ou quiçá de uma guerra pouco sangrenta, no Palatinado, nos Países Baixos, em Boémia, não importa onde, tão-pouco importa quando, todas as guerras são fragmentos de uma única guerra, a guerra sem nome, a guerra somente, a Guerra, o cavaleiro volta de um dos segmentos da Guerra, mas é como se tivesse viajado através de todos os reinos da Guerra porque todos repetem as mesmas confusões e as mesmas infâmias, de maneira que não há que ter escrúpulos cronológicos nem geográficos, os Plantagenet e os Hohenstaufen formam uma única família desordeira, os lansquenetes misturam-se com os granadeiros, os balestreiros com os arcabuzeiros, juntam-se cidades com cidades, castelos com castelos, torres com torres, em todas as batalhas morrem os mesmos mortos e todos os mortos apodrecem debaixo do mesmo sol e debaixo da mesma chuva, o cavaleiro, pois, regressa de uma conta no rosário da Guerra, ele acredita que é a última e não sabe que o rosário é infinito ou que é finito mas circular e que o Tempo desgrana-o como se fosse infinito, o cavaleiro partiu jovem e galhardo e volta velho e seco como uma casca seca, tão-pouco isto é uma novidade porque a Guerra carece de imaginação e todas as guerras repetem os mesmos truques, todos os cavaleiros que atravessaram uma província da Guerra sem cair na cilada da Morte voltam velhos e ressequidos como uma casca seca, o cavaleiro tem a barba crescida, está sujo de pó, cheira a suor, a sangue e a imundície, os piolhos alojam-se nos seus sovacos, uma borbulhagem arde-lhe na pele entre as coxas como uma queimadura, escarra uma saliva verdosa sulcada de filamentos azul-violeta, fala com a voz enrouquecida pelo frio e pelo fogo, tem os olhos vermelhos dos insones e dos bêbados, esqueceu a linguagem florida que falava quando era adolescente e servia como pajem na corte de algum Margrave ou de algum Arcebispo, agora pronuncia blasfémias e juramentos sacrílegos, olvidou as graciosas reverências de antigamente, as danças delicadas ao som da espineta, já não pede amor às mulheres, pede-lhes vinho, comida, um leito, e enquanto os soldados violam as raparigas ele bebe solitário e taciturno, até que os soldados reaparecem bocejando e então ele dá um murro na mesa e maldiz os reizetes que fogem da batalha pálidos e com a roupa feita em trapos num corcel sudoroso, para voltarem a surgir no fim da batalha vestidos a ouro, debaixo de um pálio rico, no meio de um alvoroço de auriflamas e estandartes, maldiz o Papa coberto de arminho que desde o alto da cadeira gestatória asperja com água benta os selos escarlates das alianças e das coligações, maldiz o Imperador a quem viu uma vez caminhar entre lanças erguidas como falos à vista desse simpático rapaz da Guerra, o cavaleiro põe-se de pé e tomba a cadeira, tomba a mesa, os copos e o jarro de vinho, os soldados dão bastonadas no dono da taberna, a taberna é incendiada e a tropa retoma a marcha com o cavaleiro à frente, atravessando agora um bosque à luz da lua, o cavaleiro está mudo, os olhos fixos na noite, os soldados calam-se um a um, adormecem sobre as cavalgaduras, sonham com a cabeça caída sobre o peito, um crê ouvir uma música distante, a música da sua meninice numa qualquer aldeia do Ducado de Milão ou da Catalunha, outro crê ouvir vozes que o chamam, a voz da sua mãe ou da sua mulher, alguém lança um grito e desperta sobressaltado, mas o cavaleiro não se volta para olhar quem gritou como se o grito fosse o de um pássaro no bosque, segue em frente com os olhos fixos na noite, o soldado que vai atrás dele, o que está mais próximo do cavaleiro, o soldado que leva uma bandeira desfiada e queimada pela pólvora que agora pende sobre a garupa do cavalo como uma gualdrapa ranhosa, esse soldado, um mancebo ruivo com a aparência de um jogral, subitamente tem um estranho pensamento, a ideia de que a armadura do cavaleiro cavalga vazia, a ideia de que o cavaleiro se extinguiu dentro da armadura e agora a armadura é um boneco de ferro sem o seu recheio de estopa e de serradura, imagina isto porque nunca viu o cavaleiro senão revestido da armadura que sustém a lança, esses guarda-braços e manoplas que assinalam as nortadas da Guerra, o elmo que ulula ordens e maldições e debaixo do elmo a pelagem emaranhada, mas quem sabe a pelagem não é uma barba sem rosto, um pouco de palha ou de erva que cresceu dentro da armadura, e esta ideia, esta fantasia faz rir o soldado ruivo que pensa que talvez tenha passado muito tempo desde que o cavaleiro dissecou no interior da armadura, muito tempo desde que a armadura se esvaziou do cavaleiro e eles seguiram de batalha em batalha atrás dessa armadura oca desafiando a Morte porque acreditavam que o castanholar da viseira e o ranger das dobradiças da armadura eram a voz rouca do cavaleiro, e quando o porta-estandarte ruivo ri como um sonâmbulo ou como um ébrio o cavaleiro ergue-se sobre a clavícula dos estribos e irrompe numa maldição, como se tivesse adivinhado de que se ria o porta-estandarte e quisesse fazer-lhe uma partida, demonstrar-lhe que continua vivo no interior da armadura, ou repreendê-lo por essa fantasia da armadura vácua, o soldado ruivo encolhe-se de medo mas compreende de seguida que o cavaleiro não se espevitou nem blasfemou por causa do seu riso mas antes devido às árvores do bosque, até esse momento enregeladas debaixo da lua como debaixo de um nevão no Inverno, cobrem-se de flores e de frutos repentinamente, ficaram cobertas dessa floração que o calor da Guerra faz brotar durante as quatro estações, no bom tempo e no mau tempo, nas regiões férteis e nas regiões áridas, cobriram-se desses frutos sempre no tempo oportuno, sempre maduros para a ceifa e a colheita, quero dizer o inimigo, quero dizer os inimigos inextinguíveis que nos aguardam ocultos na sombra, escondidos na névoa e no fumo, e então os ginetes sonolentos mas tudo isto já sucedeu, tudo isto já passou e agora o cavaleiro regressa sozinho ao seu castelo sem a mescla estranha e confusa de ferros, de homens e de cavalos que o escoltavam na sua viagem através de uma província da Guerra, já deixou todo esse estrépito para trás, abandonou para sempre os bivaques, as emboscadas, os saqueamentos, a fome, o terror, o sonho, não conserva da Guerra senão o cavalo, a armadura, a lança com a pele de raposa num extremo para que o sangue dos lancetados não escorregasse e lhe empapasse a mão, conserva o odor a imundície, os piolhos, a borbulhagem, a fadiga, a magreza, a velhice e as recordações, as recordações, as recordações, recordações soltas, recortadas da grande e berrante tela da Guerra, um jovem caído sobre a erva, de cara ao céu, que se afundava num rio indiferente, o Meno, o Tejo, o Arno, que afundava as pernas até aos joelhos no rio e o rio tomava as pernas do rapaz e levava-as pela corrente abaixo convertidas em fiapos, em ervas purpúreas, depois rosáceas e depois cinzentas e ocres, os dez patíbulos numa praça imensa e deserta e em cada patíbulo um réu, pendendo com a língua de fora, sino de badalo de carne arroxeada que o vento fazia soar, que o vento fazia dobrar e o campanário de dez sinos dava sempre a mesma hora fora do Tempo, o ancião que se agachava para defecar no solo gelado e coberto de neve e que de seguida desabava sobre uma mancha de sangue e de excremento, a mancha da disenteria, a torre alta, quadrada, de ladrilhos e uma fila de ciprestes mais distantes, e o jorro de pez ardente que caiu das ameias da torre sobre os cavaleiros de túnica branca e uma cruz escarlate no peito, sobre os cavaleiros que eram todos jovens e belos e pouco antes tinham assistido à missa que um bispo repleto de pedras preciosas havia oficiado para eles, e a cratera negra aberta pela pez ardente, o buraco que fumegava e crepitava como uma sertã ao lume, o cavaleiro percebeu aquele aroma doce, aquele odor a fritura e a pano queimado, sentiu um ardor sobre a mão, olhou e viu que era um pedaço de carne, um pedaço da carne de algum daqueles cavaleiros que um pouco antes ouviam missa e se entregavam a Deus, porque isto tinha sido a Guerra para ele, ainda que, quem sabe, para os reizetes fosse outra coisa, e outra para o Papa e para o Imperador, um jogo de xadrez que jogariam à distância, cada um fechado numa cidade, numa fortaleza, num palácio, até que terminada a partida sairiam um ao encontro do outro e apertariam a mão como bons contendores e repartiriam entre si as terras onde os frutos já haviam sido ceifados e colhidos, mas agora o cavaleiro saltou para fora do tabuleiro de xadrez de Papas e Imperadores, agora o cavaleiro volta ao seu castelo e no castelo livrar-se-á da sua armadura como de uma crosta seca, tirará o elmo como uma cabeça estranha, no castelo é aguardado pelo falcão, o alaúde, a mesa posta, o leito quente, sua mulher, seus filhos, os reizetes que ele salvou da ignomínia encheram-no de honrarias, o Papa e o Imperador que moveram as peças da Guerra farão dele um conde palaciano, assistente do Trono, senhor de aldeias e vinhedos, até que ao dobrar uma esquina do caminho vê sobre a colina intacta o seu castelo intacto, vê a campina ao redor, vê os camponeses dobrados sobre as sementeiras, vê um cão, um cão vagabundo e vadio, um cão que corre em várias direcções entre as ervas daninhas e se detém aqui e acolá a farejar o rastro de outros cães, e ante esse quadro pacífico do castelo, dos lavradores e do cão, o cavaleiro pensa que assim como a ele escapam as chaves da Guerra que apenas os Papas e os Imperadores conhecem e quiçá os reizetes adivinhem, a estes camponeses dobrados sobre os sulcos está negado conhecer a faina terrível da Guerra, a Guerra terá sido para eles uma notícia difusa, um resplendor de incêndio no horizonte, a passagem das tropas pelo caminho, e quanto ao cão, pensa o cavaleiro, nem sequer supôs que havia guerra, que havia pilhagem e matanças, e tratados abençoados pelo Papa, e um Imperador que fazia erguer as lanças como falos, o cão terá continuado a comer, a dormir, emparelhando-se com uma cadela e ignorando que ao longe, onde o cavaleiro guerreava, as fronteiras desfaziam-se para voltarem a refazer-se num novo desenho, o cão nunca saberá que um Vigário de Cristo era arrastado pelas ruas, que um Imperador se apoiava nu, dia e noite, diante de uma porta que não se abria, nunca saberá que a flor da cristandade tinha fervido em pez e em azeite e que um campanário de enforcados dava a hora da eternidade naquela vasta praça deserta, porque para o cão o trovão da Guerra seria o mesmo ruído pavoroso do trovão da tempestade, e se tivesse visto o simpático rapaz da Guerra tinha-lhe ladrado como a um desconhecido ou tinha abanado a cauda se lhe parecesse simpático ou lhe desse algo de comer, de modo que o cavaleiro sente orgulho em ser cavaleiro, de ter sido uma das peças do xadrez da Guerra, o cavaleiro compreende agora que há planos da realidade que não se comunicam entre si, e que se os Papas e os Imperadores ficam nos planos mais altos, ele não está no mais baixo, porque abaixo dele sempre estão esses camponeses que nem sequer fazem a Guerra, que nem sequer fazem o trabalho da história, esses camponeses anónimos sempre dobrados sobre os terrenos, e mais abaixo está ainda o cão, e aqui o cavaleiro experimenta um vago assombro, esse cão contemporâneo de Papas e Imperadores que ignora o que é um Papa, o que é um Imperador, que nem sequer sabe o que é um cavaleiro, experimenta uma espécie de sobressalto frente ao cão que vem ao seu encontro sem suspeitar as catástrofes e as façanhas que aureolam a armadura do cavaleiro, e prosseguindo com este raciocínio, prosseguindo com esta cadeia de raciocínios que se inicia no cão, o cavaleiro pensa que os últimos círculos desta hierarquia talvez não sejam nem o Papa nem o Imperador, porque assim como o cão ignora o que sabem os camponeses, assim como os camponeses ignoram o que o cavaleiro sabe e assim como o cavaleiro ignora o que sabem os reizetes e estes o que sabem os Papas e os Imperadores, da mesma maneira os Papas e os Imperadores ignoram o que apenas Deus sabe na sua totalidade e na perfeição da verdade, e estas reflexões aplicadas à Guerra, este crer que também para Deus a Guerra será uma coisa distinta da que é para os Papas e os Imperadores desperta no cavaleiro a esperança de que se os Papas e os Imperadores que dominam o jogo da Guerra o encheram de honrarias, Deus, que domina o jogo de Papas e Imperadores, o satisfará com honrarias ainda maiores, irá premiá-lo pela dor, pela fome e pela sede de que padeceu na Guerra, talvez Deus lhe retribua um a um todos os sacrifícios que ele fez na Guerra e lhe abra as portas do paraíso, e justamente quando esta esperança reconfortava o cavaleiro e o fazia sorrir, o cão, que vinha ao seu encontro, detém-se como diante de uma parede, crava as patas no solo, fica com a pele eriçada, entreabre o focinho, mostra os dentes e começa a uivar lugubremente, mas o cavaleiro crê que é porque o cão não o conhece, porque o cão se espantou com o cavalo, com a armadura, com a lança com a cauda de raposa num dos extremos, não há que surpreender-se por esse cão de camponeses se assustar frente a um cavaleiro coberto de ferro, frente a um cavalo adornado com testeiras e peiteiras, pelo que o cavaleiro não dá nenhuma importância à atitude do cão e segue avançando pelo caminho rumo ao castelo, os cascos do cavalo estão perto de esmagar o cão, o cão muda de lado com um salto e continua a uivar, continua a gemer e mostrando os dentes enquanto o cavaleiro voltou a pensar na sua mulher, no falcão e no alaúde de amor, e esquece-se do cão, o cão ficou para trás na sua memória como ficou a Guerra, e assim é que o cavaleiro não sabe que o cão farejou ao redor da armadura a exalação da morte e do inferno, pois o cão já sabe o que o cavaleiro ainda não sabe, o cão já sabe que na virilha do cavaleiro uma borbulha começou a destilar as secreções da peste negra, e que a Morte e o Diabo aguardam o cavaleiro ao pé da colina para o levarem com eles, porque se o cavaleiro lê-se o que agora escrevo pensaria, seguindo uma ordem análoga ao sentido dos seus raciocínios anteriores ainda que em sentido inverso, o cavaleiro pensaria que assim como o cão se deteve onde o cavaleiro passa apressadamente, assim também os cavaleiros acaso se detenham onde os Papas e os Imperadores passam apressadamente, de modo que talvez os Papas e os Imperadores ignorem os cavaleiros, pensaria que a guerra dos cavaleiros é, para Papas e Imperadores, como o fedor da Morte e do Diabo que apenas os cães farejam, e sempre dentro deste raciocínio o cavaleiro pensaria que talvez os Papas e os Imperadores se detenham onde Deus passa apressadamente, que talvez joguem um xadrez que não conta para Deus, quero dizer que talvez Deus não veja esse tabuleiro e a seus olhos o sacrifício das peças não valha nada e o cavaleiro não seja absolvido dos seus pecados em graça do seu primor na Guerra nem seja recebido no Paraíso, quero dizer que se o cavaleiro raciocinasse desta maneira pensaria que talvez as realidades que atraem os homens, sejam reis ou camponeses, formem um tecido que não atrai Deus do mesmo modo que o cavaleiro atravessou, sem vê-la, a malha que o cão não atravessa, não obstante a malha ter sido urdida para o cavaleiro e não para o cão, não obstante as realidades dos homens estarem entrançadas para Deus, mas o cavaleiro não lerá o que agora escrevo e já chega ao pé da colina, feliz com a esperança de que a sua vida tenha entretecido a rede na qual cai-a a mosca Papa, na qual cai-a a mosca Imperador, feliz com a esperança de que Papas e Imperadores tenham tecido a outra rede na qual cairá Deus, enquanto lá em baixo, no caminho, o cão que confunde o trovão da Guerra com o trovão da tempestade segue e continua empreendendo uma outra guerra na qual o cavaleiro confunde o latido da morte com o latido do cão.
Marco Denevi
Falsificações
Versão de HMBF

terça-feira, 17 de junho de 2008

O LOBISOMEM

O amor é para mim um iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue e de morte,
Um metal parecido com ciúme.

(O iroquês sabe há muito o caminho e o lugar
Onde estou à mercê:
É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,
Passando por entre uns arvoredos colossais
Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão.)
Outro dia senti um ladrido
De concreto batendo nos cascos:
Era o meu Iroquês que chegava
No seu gesto de anti-Quixote.
Vinha grande, vestido de nada
Me empolgou corações e cabelos
Estreitou as artérias nas mãos
E arrancou minha pele sem sangue
E partiu encoberto com ela
Atirando-me os poros na cara.
E eu parti travestido de Dor,
Dor roubada da placa da rua
Ululando que o vento parasse
De açoitar minha pele de nervos.
Veio o frio com olhos de brasa
Jogou olhos em todo o meu corpo;
Encontrei uma moça na rua,
Implorei que me desse sua pele
E ela disse, chorando de mágoa,
Que era mãe, tinha seios repletos
E a filhinha não gosta de nervos;
Encontrei um mendigo na rua,
Moribundo de fome e de frio:
«Dá-me a pele, mendigo inocente,
Antes que Ela te venha buscar.»
Respondeu carregado por Ela:
«Me devolves no Juízo Final?»;
Encontrei um cachorro na rua:
«Ó cachorro, me cedes tua pele?»
E ele, ingénuo, deixando a cadela
Arrancou a epiderme com sangue
Toda quente de pêlos malhados
E se foi para os campos de lua
Desvestido da própria nudez
Implorando a epiderme da lua.
Fui então fantasiado a travésti
Arrojado na escala do mundo
E não houve lugar para mim.

Não sou cão, não sou gente – sou Eu.

Iroquês, Iroquês, que fizeste?


Décio Pignatari
Antologia de Poesia Brasileira do Século XX – Dos Modernistas à Actualidade

segunda-feira, 16 de junho de 2008

XOCHITEPEC

Esses animais que nos seguiam no sonho
São devorados pela aurora, mas onde estão os
Que nos caçam, que nos cheiram, que nos perseguem, tão
Perto da nossa vida, barriga para baixo, caçando os nossos projectos
De construção, as suas formas delirantes,
Os símbolos da morte, da heráldica, das sombras,
Ferozmente... Pouco antes de deixarmos Tlampam
Os nossos gatos jaziam a tremer debaixo do maguey;
Um sentido se escapara, já rígidos, sobre a ravina,
Onde entrámos agora, e cujo nome é inferno.
Mas a nossa última noite ainda contém o seu animal:
O cachorro, no cabaret, obsceno,
Às voltas e voltas, sujando o chão,
E atando-se a si próprio a esse horror
Da nossa última noite; enquanto no dia final
Quando me sentava curvado, congelado em mezcal,
Eles arrastaram duas muito jovens corças aos gritos pelo hotel
E aí as degolaram, atrás da porta do bar...

Malcolm Lowry
As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar
Tradução José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim

segunda-feira, 9 de junho de 2008

A MÃE

Eu não existo, não existo senão no teu chão.
Quando tu gritaste e a tua pele tremeu
Ganharam lume os meus ossos.

(Minha mãe, prisioneira na sua pele,
Muda ao sabor dos anos.

O seu olhar é límpido, escapa à deriva
Dos anos ao fixar-me e ao chamar-me
Seu ditoso filho.

Ela não era uma cama de pedra, uma febre animal,
As suas articulações eram jovens gatos,

Mas a minha pele mantém-se para ela imperdoável
E ficam imóveis as cigarras na minha voz.

«Cresceste, deixaste-me para trás», diz ela lavando
Com vagar os pés a meu pai, e fica calada
Como uma mulher sem boca.)

Quando a tua pele gritou, ganharam lume os meus ossos.
Tu pousaste-me, jamais poderei retransformar essa imagem,
Eu era o hóspede convidado mas que matava.

E hoje, mais tarde, fiz-me virilmente estranho a ti.
Tu vês-me aproximar, pensas contigo: «Ele é
O Verão, ele faz a minha carne e aguenta
Os cães em mim vivos.»

Enquanto tu todos os dias vais morrendo, não junto
Comigo, eu não existo senão no teu chão

Em mim desfaz-se rodopiando a tua vida, tu não
Voltarás para mim, de ti nunca me hei-de curar.

Hugo Claus
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Tradução de Fernando Venâncio
Assírio & Alvim, 2001

Oferecido por
Rui Almeida.

PRIMAVERA


Chegou a Primavera e radiantes
As aves a saúdam com seu canto
E com o zéfiro sopro as fontes
Murmuram docemente, entretanto.

Vêm cobrindo o ar de negro manto
Trovões e relâmpagos que a anunciam
E as aves, quando aqueles aliviam,
Regressam então ao canoro encanto.

E, assim, sobre o florido e ameno prado,
Ao pé do arvoredo sussurrante,
Dorme o cabreiro com o seu cão ao lado.

Com a flauta pastoril de som radiante
Pastor e Ninfas dançam sob o amado
Céu primaveril, que surge brilhante.

Antonio Vivaldi
Quatro Estações
Tradução de Rui Almeida


Oferecido por Rui Almeida.

MORTE A CRÉDITO


[...]
Estou-me nas tintas para que me considerem sério ou não. Ainda lhes bebo à saúde. A minha intervenção é gratuita, absolutamente suplementar. A mãe apela outra vez para as suas coxas. Dou um derradeiro parecer. E depois, desço as escadas. No passeio está um cãozito, que coxeia. Segue-me por sua alta recriação. Tudo esta tarde se me agarra. É um pequeno fox, o cão, preto e branco. Está perdido parece-me a mim. Aqueles ingratos daqueles desempregados lá de cima. Nem sequer me acompanham à porta. Tenho a certeza que começaram logo à pancada. Ouço-os a berrar. Ele que lhe meta o tição todo pelo cu a dentro! Para a endireitar àquela porca! Para ela aprender a não me vir incomodar!
Agora viro à esquerda... Para Colombes, em suma. O cãozito continua atrás de mim... A seguir a Asniêres é a Jonction e depois o meu primo. Mas o cãozito coxeia muito. Olha para mim. Chateia-me vê-lo arrastar-se. O melhor é voltar para casa ao fim e ao cabo. Viemos pelo Pont Bineux e depois à beira das fábricas. Ainda não tinha fechado, o dispensário, quando eu voltei... «Vamos lá dar de comer a este rafeiro – disse eu para a Senhora Hortense. Alguém que vá buscar carne... Amanhã de manhã cedo logo se telefona... Hão-de vir buscá-lo de carro, lá da Protectora. Esta noite o melhor é ficar fechado.» Lá fui então, sossegado. Mas era um cão muito assustadiço. Tinha recebido duros golpes. A rua é malvada. Ao abrir a janela, no dia seguinte, nem sequer esperou, saltou logo lá para fora, também nós lhe metíamos medo. Julgou que o tínhamos castigado. Não percebia nada de nada. Confiança já a perdera de todo. Quando é assim é terrível.
[...]

Céline
Morte a Crédito
tradução de Luiza Neto Jorge
Assírio & Alvim, 1986
Oferecido por Rui Almeida.

domingo, 8 de junho de 2008

SALMO 21

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?
Como estais longe da minha oração,
das palavras do meu lamento!
Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis,
clamo de noite e não me prestais atenção.

Vós, porém, habitais no santuário,
sois a glória de Israel.
Em Vós confiaram nossos pais,
confiaram e Vós os libertastes.
A Vós clamaram e foram salvos,
confiaram em Vós e não foram confundidos.

Eu, porém, sou um verme e não um homem,
o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe.
Todos os que me vêem, escarnecem de mim,
estendem os lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre,
Ele que o salve, se é seu amigo».

Fostes Vós que me tirastes do seio materno,
sois Vós o meu defensor desde o regaço de minha mãe.
A Vós fui entregue logo ao nascer,
desde o seio materno sois o meu Deus.

Não Vos afasteis de mim, porque estou atribulado,
e não há quem me ajude.

Manadas de touros me cercaram,
touros de Basã me rodeiam.
Abrem as fauces contra mim,
como leão que devora e ruge.

Sou como água derramada,
Desconjuntam-se todos os meus ossos.
O meu coração tornou-se como cera
e derreteu-se dentro do meu peito.
A minha garganta ficou seca como barro cozido
e a minha língua colou-se ao céu da boca.
Assim me reduzistes ao pó do túmulo.

Matilhas de cães me rodearam,
cercou-me um bando de malfeitores.
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés,
posso contar todos os meus ossos.
Eles, porém, contemplaram e observaram-me.
Repartiram entre si as minhas vestes
e deitaram sortes sobre a minha túnica.

Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim,
sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me.
Livrai a minha alma da espada
e das garras dos cães a minha vida.
Salvai-me das fauces do leão
e dos chifres dos búfalos livrai este infeliz.

Hei-de falar do vosso nome aos meus irmãos,
Hei-de louvar-Vos no meio da assembleia.

Vós que temeis o Senhor, louvai-O,
glorificai-O, Vós todos os filhos de Jacob,
reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel.
Porque não desprezou nem repeliu a angústia do atribulado,
nem escondeu dele a sua face,
mas atendeu-o quando lhe pediu socorro.

Ele é o meu louvor na grande assembleia,
cumprirei a minha promessa na presença dos que O temem.
Os pobres hão-de comer e serão saciados,
louvarão o Senhor os que O procuram:
«Vivam para sempre os seus corações».

Hão-de lembrar-se do Senhor e converter-se a Ele
todos os confins da terra;
e diante d'Ele virão prostrar-se
todas as famílias das nações.

Ao Senhor pertence a realeza,
é Ele quem governa os povos.
Só a Ele hão-de adorar todos os grandes do mundo,
diante d'Ele se hão-de prostrar
todos os que descem ao pó da terra.

Para Ele viverá a minha alma,
há-de servi-l'O a minha descendência.
Falar-se-á do Senhor às gerações vindouras
e a sua justiça será revelada ao povo que há-de vir:
«Eis o que fez o Senhor».

atribuído ao Rei David
Livro dos Salmos
Conforme a Liturgia oficial da Igreja Católica


Oferecido por Rui Almeida.

[primeiro parágrafo de] Correr fado


Há que tempos não via um corrilário assim! Sume-te, diabo! Deixa-me entrar, deixa-me entrar! Vinha agora a descer o caminho ali em cima, antes das alminhas da Moita, e passou por mim um corrilário, Deus me livre! Eram para aí uns cinquenta cães. Mais! Todos em magote a descer por lá abaixo, a ladrar e a uivar, que barulheira! Eu encostei-me ao muro da Quinta da moita e fiquei lá queda, com o xaile a cobrir a cabeça, nem virei a cara quando aquilo passou. Há que tempos não via um corrilário assim! Eram mais de cinquenta cães. Antigamente viam-se muitos, agora nem tanto. Em noites claras como esta, a gente costumava ouvi-los e nem se atrevia a sair da porta para fora: «Deixem ir as almas penadas que aí vão», dizia a minha mãe. «Sume-te, diabo!» E a minha mãe benzia-se logo três vezes. É que aqueles corrilários, dizem os antigos, são almas penadas que andam por aí perdidas e se se metem connosco pode ser perigoso. Quando se vê um corrilário é logo esconder a cara e não fazer barulho, para eles passarem sempre a eito. Se não a canzoada vira-se a nós e não se sabe o que pode acontecer. E ali, assim que cheguei às alminhas da Moita, benzi-me logo três vezes. Deixem-me sentar aqui perto do fogão que me está a faltar o ar. Lá fora está um frio que tolhe.

José Pinto Carneiro
Vende-se
Cotovia, 1996


Oferecido por Rui Almeida.

sábado, 7 de junho de 2008

PÁGINAS


[…]
Nisa é a última beleza do Alto Alentejo – é mesmo já nas encostas da despedida e de onde ainda se vê Marvão, mas onde se respira já um aroma penetrante a Beira Baixa. Fomos comprar barros de Nisa. Ah! Cães de Nisa! Grande frase – só em Nisa é que percebi bem a realidade da expressão. É que os cães de Nisa são os melhores perdigueiros do país. Para levantar perdizes e caçar no monte não há como uma cãozoada. Tantas vezes na vida tenho dito: Ah! Cães de Nisa – num grito aflitivo de implorar um superlativo absoluto. O meu constante desejo de superlativo fez-me gritar pelos cães de Nisa na praça mais pública da vila. Ao meu berro Ah! Cães de Nisa!, só apareceram meia dúzia de rafeiros sonolentos, o resto, de quatro costados e livro de linhagem, andava na arte de bem caçar a toda a gana – o que tinha ficado na praça pública era o resíduo das noites de insónia dos Senhores Cães de Nisa, nobre raça que fareja altiva o nosso país de norte a sul. Ah! Cães de Nisa!
[…]

Ruben A.
Páginas (V)
1967
Oferecido por Rui Almeida.

PÁGINAS



[…]
Em cães tenho corda para muito mais conversa do que sobre o tempo, apesar de ultimamente ir começando a conhecer melhor as tendências do Senhor Tempo e a defender-me das suas irregularidades. E de facto é difícil ser-se um amigo para toda a vida porque, vai não vai, está carrancudo de horizonte cerrado, sem eu saber porquê, qual o motivo da zanga e qual a razão de tanto refestelo.
Em cães já sou forte, mas em cadelas ainda me atrapalho pois elas são difíceis de se descobrir enquanto a conversa não se centraliza sobre a família, os amigos e até os desconhecidos.
Isto de genealogias, meu Deus, é um mar sem fim de snobismos de elegância de modas de ciúmes de intrigas de tratamentos de festas de alimentos que até me tem trazido afastado por não ter um cão.
No momento em que chamam Dear ou Darling aos cães eu fico logo desarmado – depois vem em procissão a lengalenga dos sweet para cima e sweet para baixo aparecendo estes mimos mais claros e íntimos do que todas as carícias temporais.
Os cães são mais bem tratados do que as filhas do dono da casa, têm mais carinhos do que as crianças e andam mais bem tosquiados do que os velhos – sobem para cima das cadeiras estofadas fazendo porcaria por toda a casa sem que os amos abram a porta para os ruar.
«Isn't he a dear? She is a darling! As the weather is so fine I am going to take them out for a walk in the park. They are lovely». As cadelas em inglês não são cadelas, são outra coisa e vá lá convencer qualquer indígena que o animal cão é uma cadela! Até o tempo ficava ofendido por tanta incompreensão.
Aqui há tempos um rapaz, um dos antigos rapazes da R. A. F., foi sair com o bom tempo. Pela tarde fora, no parque, pôs-se à vontade, começou-se a fazer fino. Até que as coisas foram às do cabo e veio uma abada enterítica que causou grandes dissabores. O bom tempo não era desses.
Às vezes, no meio duma conversa em sala cheia, ouço estas palavras: Isn't she so lovely e nunca percebo se é uma tipa boa que está à vista ou se estão a falar a propósito da cadela amiga que ficou em casa portando-se muito bem. Lá brincadeiras com Darlings e sweets eu não quero, vá lá estar um cão próximo e posso levar uma dentada.
Desconfio sempre com essa história dos Darlings – até mesmo me custa a responder. Aos Dears é mais fácil porque o uso está muito mais generalizado e como já é um hábito eu não me importo – mas sweet sweet ou darling darling é sinal para farejar primeiro.
Conheço várias raças de cães: uns que andam ao colo, outros de capa aos quadrados escoceses, outros que metem medo, uns que parecem chouriços ao atravessar uma rua –do lado de lá do passeio está a cabeça e do lado de cá ainda vai o rabo. E cada um deles com uma árvore genealógica que faz corar muitos reis da Europa. Campeões, pais laureados, filhos distintos, mães agradecidas – vê-se logo que isto é um país onde não há rafeiros e muito menos cães de viela. Havia um Fadista de Mafra, quando eu lá estava na tropa, que se descesse aqui punha as cadelas, ou elas todas no seu estado interessantíssimo –, a cadela do meu tio João – a Zazá – essa então dava que falar em sociedades formando rapidamente um saloon rival das boémias penachadas do Fadista.
Um pormenor interessante é ser convidado para passar o fim-de-semana no campo e, ao chegar lá, o cão – velho Lord ou caquética Lady – está deitado ao longo do sofá torneando um olhar para nós com um ar de desprezo maroto. Faz-se um sorriso bocando-se um duvidoso very nice, até mesmo continuamos em pé para não estragar aquela árvore zoológica a descansar de fadigas no sofá quentinho.
Quando o cão, ou ela, tem necessidade em ir lá fora, pára imediatamente a conversa, estabelece-se uma passagem para Sua Excelência que então, solene e majestática, dirige os seus passos – entre elas – para a árvore de botânicas regadas. Eu sorrateiramente sento-me no sofá, a espraiar-me um pouco, quando constato um sorriso amarelado escancarar-se nas trombas da dona da casa ao dizer-me: He, ou she, is charming! Basta.
Fica desde já assente que não tenho charme para cães.
[…]

Ruben A.
Páginas (III)
1956


Oferecido por Rui Almeida.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

UMA ELEGIA

É em manhãs assim que não sei como escrever
elegias, vou ao ágora do poema e só encontro
cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,
a extensa litania que submerge a cidade e irrompe

do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,
com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,
e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas
o exíguo território a que se confinam os mortos,

os mortos amontoados nas ruas, como se fossem
uma barreira para o mar, uma barreira de coral
com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto
do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica

o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres
definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa
a enumerar as ondas, a descer sobre os campos
onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.

És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de
escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz
o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas
e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.

Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal
para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te
o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço
um juramento em que estás presente, ainda que estejas

ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.
Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,
encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro
e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,

ainda que em manhãs assim não saiba como escrever
elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo
te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,
apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,

sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro
sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,
ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta
com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.

Amadeu Baptista
Poemas de Caravaggio

quinta-feira, 5 de junho de 2008

AO MEU CÃO FIXE

Agora os crepúsculos são frios
E a brisa traz a humidade das folhas mortas...

Tu, meu cão, cerras os olhos e dormes...

Vem aí Dezembro...
Tenho saudades do teu silêncio,
Do teu focinho macio e quente,
Do teu olhar,
Meu amigo!

Oh! meu cão, para ti ainda sou o teu dono menino
E és o único que me acompanha nos passeios mágicos...

Depressa lá estarei contigo. Dezembro aproxima-se...
Agora os crepúsculos são frios...

Cristovam Pavia
Poesia
Moraes Editores, 1982

Oferecido por
Rui Almeida.

SOBRE A POESIA DE CRISTOVAM PAVIA

[excertos]

[...]
Ainda em 1950 encontramos nos poemas de Cristovam Pavia duas figuras que voltarão posteriormente: o cão e o próprio poeta como morto. O cão é em Cristovam Pavia um símbolo de total pureza e disponibilidade, continuação e espírito da terra onde vive, testemunho da integridade da infância perdida, da amizade, da presença que na sua mudez exprime o que de mais fundo possui, da fidelidade da sua planície. É de 1950 o poema Ao meu cão «Fixe», de que se fala mais adiante. E um dos poucos poemas que conhecemos dos últimos anos da sua vida e que sabemos ter sido escrito depois da publicação dos 35 Poemas é Ao meu cão, que é o único poema seu em que se reflecte o remorso. Para quem tinha uma tão profunda religiosidade, que o mesmo é dizer que se sentia religado a tudo o que conhecia, só um cão (porventura companheiro da adolescência, da solidão, de horas cuja angustia talvez ninguém conheça) de olhos / Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação / De tudo... lhe mereceu um pesado remorso por o ter deixado só, à hora de morrer, talvez por nele encontrar a grandeza que então não reconhecia aos homens. (Sublinhe-se que este poema é de 1966, quando o poeta já tinha vivido quase tudo o que tinha para viver.) Talvez a morte deste cão lhe tenha despertado a lembrança da morte dum outro cão, ocorrida na sua infância, que nunca esqueceu, a ponto de a lembrar muito depois num poema que é só esta nota profundamente ferida: Há-de haver sempre meninos a chorar ao pé do velho cão morto.

[...]

Um poema [...], Ao meu cão «Fixe», é o olhar saudoso do estudante de 17 anos, preso em Lisboa pelos seus afazeres escolares, que divisa o mundo da sua infância, onde espera ir, provavelmente nas ferias de Natal que se aproximam. (Vem aí Dezembro). Uma das razões por que deseja partir para essa paisagem amada é porque para o seu cão ainda sou o teu menino, isto é: para o mundo que o rodeia e lhe é hostil o poeta perdeu a infância, mas para o mundo animal, isento de julgamento porque inocente, ele continua a ser o menino que interiormente sente que é ou que deseja ser.
[...]

José Bento
Poesia [de Cristovam Pavia]
Moraes Editores, 1982
Oferecido por Rui Almeida.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

– Quem são estes?

Da tartaruga retirar a tartaruga,
deixá-la ser apenas a não tartaruga.
Chove. As gotas molhariam seu atraso.
Eis o primeiro ciclo, o da falta.
A chuva insiste, toca as telhas de amianto.
A casa está fechada e quem está lá dentro
é a continuação da chuva e do amianto.
Esse o segundo ciclo, o do gesto.
Junto da casa, um quintal. Ainda não.
Quem sabe quando a chuva parar de insistir
eu compreenda as regras da perspectiva.
O que se retirara retorna. Silêncio.
À tartaruga chega-se por paciência.
Terceiro ciclo, o das coisas repetidas.


O coração subentendido do elefante
desce por uma linha que vai dar ao lado
do que se repetiu sem ter sequer e ainda
acontecido uma só vez. Analogia.
Junto do verso acima, novamente a casa.
No quintal dois cachorros latem sem parar;
um deles nada sabe acerca do elefante
e de seu coração localizado às pressas.
Entro na casa até que a casa deixe o texto.
O elefante é do lado de fora. Por isso
o quintal, os cachorros, os ciclos, a linha.
Interrompem-se então tamanho e referência.
Talvez viesse pelas águas. Improvável.
Sobre a copa das árvores a ventania.


A casa está vazia não por mera ausência,
mas para o aprendizado da subtração.
E a chuva, porque cai desde o terceiro verso,
além de chuva é extensão desse elefante.
A casa está vazia para que se saiba
do desapego que há em insistir no mesmo.
Mesa e pausa. A chuva caindo talvez
e apenas como efeito de profundidade.
Depois um dos cachorros. Não, acho que só
seu deslocar-se repetido até a porta.
A metodologia seguida do gesto.
Alguns pássaros seguem para o noroeste.
Tudo começa no elefante. Lentamente
a bala dentro do tambor, as leis da física.


Os pássaros aos poucos pousam no que sobra;
o pouso repetindo-se até haver árvores.
Espécie de equilíbrio natural nos ciclos
que haja ainda e a partir de agora apenas árvores.
E por haver apenas árvores, chego ao
cuidado que se ganha em se perder tais pássaros.
Assim, em cada projeção, seu negativo;
no que algo se levanta, algo também cai.
Compensação e equivalência. Revoada.
Os pássaros e as árvores segundo os peixes
que ausentes marianne moore quis próximos ao jade.
Em outro lugar deixo um jornal sobre a mesa.
As coisas são somente por faltarem todas.
Substituição e excesso. Continua.


Imitação do esquecimento o fato
de a primeira pessoa não ter posto
jornal algum na mesa. Mas espera.
Olha como retorna a tartaruga.
De seus ciclos inúmeros e três,
a segunda pessoa esta terceira.
Alguém, não sei, talvez um homem que
chegasse em casa com o tal jornal.
Me pergunto se já não o conheço.
Ele se olha no espelho e vê o pai,
depois pensa na chuva e na mulher.
Entre os dias então escolhe um dia
– anulação do dia anterior.
Quem sai, sai de onde quando entra na casa?


Ao elefante nada disso importa;
seu coração inchado ainda desce
ao vir por uma linha que vai dar
ao lado das palavras de quem chega.
E toca o chão. E quando o toca está
tocando notas menos simultâneas
que repetidas. Por exemplo, pássaros,
jornal, cachorros, telhas de amianto,
árvores, mesa, peixes e quem sabe
até todo o catálogo das naus.
Depois, lembro, alguém se olha no espelho.
Ainda não. A paciência insiste.
Sete anos de pastor jacob servia.
Introdução. O tempo do elefante.


Pausa e peixes. Mover-se em relação
ao que se move permanece imóvel.
Muda o registro, árvores mais pássaros
igual talvez a casa menos chuva.
Muda outra vez: a mesma marianne moore
– que traduziu até algumas fábulas
de la fontaine – ao ler o verso abaixo:
where there is personal liking we go.
Sim, hoje marianne, amanhã jacob
e assim seguindo, sob a mesma chuva,
de nome em nome até tocar o chão,
i.e., até que cicatriz alguma
possa impedir que homônimos raquel,
lia e filhos estejam entre os seus.


Da tartaruga retirar o não
que antecedia a coisa repetida.
Não para confirmá-la, já que é de
confirmação que a tartaruga inteira é feita.
Mas para contrapô-la ao elefante
e a seu ainda inchado coração.
Por isso que o que fica no lugar
do gesto é seu reverso e também extensão.
Colocar sobre a mesa tanto o pôr
como o não pôr jornal nem coisa alguma.
Anulação seguida de recuo.
Chove. As gotas contra o amianto
das telhas descobertas molhariam
por três vezes o não da tartaruga.

Leonardo Gandolfi

terça-feira, 3 de junho de 2008

MAIS FÁBULAS FANTÁSTICAS

O CÃO DE FOCINHO NO RABO

Ao avistar um Caniche, um leão desatou a rir-se, a bandeiras despregadas, do ridículo espectáculo.
- Já se viu animal tão pequeno? – perguntou.
- É bem certo – replicou o Caniche, num tom de austera dignidade – eu ser pequeno, mas peço-lhe, meu senhor, que repare em que sou Cão de focinho no rabo.



DOIS CÃES

O Cão, ao ser criado, ficou com uma cauda rígida; mas, após séculos de existência sem alegria, vendo-se ignorado pelo Homem, que o forçava a trabalhar para merecer o pão quotidiano, solicitou ao Criador que lhe concedesse o dom de abanar o rabo. Uma vez o requerimento deferido, viu-se o Cão capaz de dissimular ressentimentos com um sinal de afecto, passando a terra, daí em diante, a pertencer-lhe, com toda a sua abundância. Ao reparar nisso, o Político (animal criado muito mais tarde) rogou ao Senhor que também o dotasse de movimento. Mas como não possuía apêndice caudal, foi-lhe dado mover os queixos, que, hoje em dia, agita com bastante proveito e satisfação, menos à hora das refeições.


DECEPÇÃO

Tinha-se um Cão cansado de tal maneira a correr atrás da própria cauda, que acabara por abandonar a perseguição, enrolando-se todo para descansar. Uma vez nesta posição, apercebeu-se de que tinha a cauda mesmo a jeito e ferrou-lhe os dentes com tal avidez que a largou logo a seguir, cheio de dores.
- Afinal de contas – concluiu – há mais prazer na perseguição do que na posse.


O CÃO E O MÉDICO

E perguntou o Cão ao Médico que tinha ido assistir ao funeral de um dos seus ricos clientes:
- Quando é que o senhor doutor tenciona desenterrá-lo?
- Mas porque é que o hei-de desenterrar? – perguntou o Médico.
- Eu, quando meto um osso debaixo do chão – declarou o animal – é com a ideia de, mais tarde, o tirar cá para fora, e meter-lhe o dente.
- pois é, mas os que eu enterro – explicou o Esculápio – já nada têm que roer.


O ESPELHO

Um «Epagneul», de sedosas orelhas, descendente em linha recta do rei Carlos II, olhou, um dia, por acaso, para um espelho preso à parede de uma sala do rés-do-chão da casa da dona. Ao ver a sua imagem, pensou que se tratava doutro cão, lá fora, e declarou:
- Eu sou muito capaz de, com duas dentadas, dar cabo daquele miserável animalejo, e é o que vou já fazer.
Mal disse isto, saiu a correr para os lados da casa onde lhe parecia que se encontrava o seu inimigo. Ora deu-se o caso de lá estar um Buldogue, de dentuça arreganhada ao sol. O «Epagneul» parou logo, tolhido por uma terrível consternação. A seguir, depois de, por momentos, ter examinado o Buldogue a distância respeitável, badalou-lhe umas coisas neste estilo:
- Não sei se o senhor cultiva as artes da paz ou se prefere desfraldar o estandarte das batalhas, prosseguindo pela via da guerra. Se é um civil, pode-se muito bem dizer que as janelas desta casa o lisonjeiam mais do que o faria um jornal; mas se é um soldado, pode afirmar-se que são muito injustas para consigo.
O Buldogue não percebeu patavina de tanto palavreado; limitou-se a sorrir, com toda a delicadeza, o que muito assustou o «Epagneul», que, logo ali, esticou o pernil.


O FACTOR ESQUECIDO

Um Homem tinha um belo Cão e, depois de, com todo o cuidado, lhe ter escolhido companheira, conseguiu criar um bom número de animais de inteligência quase angelical. Apaixonando-se, entretanto, pela sua lavadeira, o tal Homem casou-se com ela, e criou uma ninhada de cretinos.
- Ai de mim! – lamentou-se, contemplando tão deplorável resultado. – Se eu tivesse posto na escolha da minha, metade dos cuidados que dediquei à escolha de companheira para o meu cão, seria hoje um pai feliz e orgulhoso da sua prole.
- Não estou assim tão certo disso – comentou o Cão, que ouvira, por acaso, a palinódia. – É verdade haver uma grande diferença entre os seus filhos e os meus, mas lisonjeia-me o facto de a mesma não ser inteiramente devida às respectivas mães. Olhe que eu e o senhor também não somos nada parecidos.


Ambrose Bierce
Fábulas Fantásticas
tradução de João da Fonseca Amaral
Editorial Estampa, 1977

Oferecido por Rui Almeida.

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