Antologia de textos com cães dentro.

sábado, 20 de dezembro de 2008

A SIBERIANA


Tenho um favor para te pedir", disse Deus
O cão não disse nada mas cheirou a contentamento e Deus apercebeu-se que nos seus pensamentos, o animal O considerava "o Grande e Odorífico Pai de todas as Matilhas".
" Queres cumprir uma missão na Terra? Eu sei que não é agradável, mas há alguém que precisa de consolo na aflição, quem sabe se de um Anjo da Guarda?"
O cão abanou a cauda suavemente, havia nele curiosidade e um leve odor de receio. Depois levantou-se decidido, deu um pequena volta a guardar memórias das flores e das minúsculas árvores, bebeu um gole na cascata, abanou uma vez mais a cauda em frente ao monge budista e dirigiu-se para a porta onde se sentou à espera.
Deus transformou-o um pouco, deu-lhe a idade apropriada, uma forma indecisa, vagamente de perdigueiro, toco-lhe por um instante no focinho e acompanhou-o a uma das múltiplas portas para a Terra. Umas almas vinham a subir, Deus saudou-as, e encaminhou-as para Pedro que, nos primeiros momentos de eternidade os acompanhava.
Depois ficou a ver.
Maria da Luz ia pela rua abaixo, quase a entrar no carro
Deus aproveitou para dar uma endireitadela numa peça do Amarelinho que estava prestes a partir-se, fez recuar mais duas ou três no tempo para ficarem como novas
Um perdigueiro de olhos sábios mas alegres
"Terá dois meses"? ouviu-a interrogar-se, " de quem será?"
E uma vizinha a explicar do conforto da sua janela onde secava abundante roupa interior de chamativas cores:
"Deve andar perdido, já anda aí às voltas desde manhãzinha. Parece que gostou da menina, não deixou ninguém tocar-lhe... andaram aí uns miúdos que o queriam levar..."
E o rafeiro deu à cauda agitadamente, com o corpo todo a gingar à volta de Maria da Luz e dentadinhas amorosas nos sapatos, as unhas aceradas a furar malhas nas meias de lycra..
Quando a viu baixar-se,
Para afagar, um tanto desajeitada, havia que concordar, o pequeno pedaço de cachorro orelhudo, e dizer para a vizinha
"Se alguém perguntar por ele, se faz favor, diga que sou eu quem o tem..."
Depois, enfim, pegar no refeirito ao colo para entrar com ele no Amarelinho – que pegou primeira e já não fazia aquele ruído esquisito, estranhou Maria da Luz,
Deus suspirou.

Rui da Costa Lopes
A Siberiana
Cãmara Municipal de Sintra
(Prémio Ferreira de Castro 1997)

Oferecido por Ana Gomes Ferreira.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SONETOS PARA OS AMIGOS MORTOS

III

Morreste como um cão foste abatido
Um dia frente aos olhos da tv
Que a polícia se fez co’o teu destino
Por um premeditado sei lá quê

Como um cão como um rato como um chino
Como um preto um judeu ganhão maltês
«Dispara dá-lhe cabo do cortiço»
Dizia a viril morte que te fez

Morrer completamente em todo o chão
Fez a morte de novo obra acabada
Matou duma só vez todo o teu não

E mais que tudo não te deixou nada
Pra levares contigo no caixão
Teu último pendão e barricada

Manuel Resende
O mundo clamoroso, ainda
Angelus Novus
2004

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