Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 23 de novembro de 2008

DICIONÁRIO DO DIABO

APAZIGUAR, v. Chamar «cãozinho» a um buldogue quando este se encontra firmemente agarrado à nossa retaguarda.

CÃO, n. Uma espécie de Divindade subsidiária ou adicional, concebida para receber os excedentes da adoração mundial. Este Ser Divino, nalgumas das suas encarnações mais pequenas e macias, ocupa no coração da Mulher o lugar ao qual nenhum macho humano pode aspirar.

CÉRBERO, n. O cão de guarda do Hades, que tinha por dever proteger a sua entrada – não se percebendo claramente contra quê ou quem a guardava ele, pois toda a gente, mais cedo ou mais tarde, tinha de passar por ela, e também ninguém tinha vontade de forçar a entrada.

EFEITO, n. O segundo de dois fenómenos que ocorrem sempre juntos e na mesma ordem. Do primeiro, ao qual se chama Causa, diz-se que gera o segundo – o que é tão sensato como dizer-se que, por se ter visto um cão a perseguir um coelho, o coelho é a causa do cão.

MEDICAMENTO, n. Uma pedra atirada para o Cais do Sodré com o objectivo de matar um cão no Rossio.

RAFEIRO, n. O grau mais baixo na hierarquia dos cães.

REDUNDANTE, adj. Supérfluo; desnecessário; de trop.

Diz o sultão: «Há evidência abundante
De que este cão infiel é redundante.»
Responde o Grão-Vizir, com pose altiva:
«A sua cabeça, pelo menos, parece excessiva.»

Habeeb Suleiman

REVERÊNCIA, n. A atitude espiritual do homem perante Deus e do cão perante o homem.

ZEUS, n. O chefe dos deuses gregos, adorado pelos Romanos como Júpiter e pelos americanos modernos como Deus, Ouro, Populaça e Cão. Alguns exploradores que atingiram a costa da América, assim como um que garante ter percorrido uma distância considerável até ao interior, pensaram que estes quatro nomes designavam quatro divindades distintas; mas na sua obra monumental sobre Crenças Sobreviventes, Frumpp insiste na ideia de que os nativos são monoteístas, não tendo cada um deles qualquer outro deus que não ele próprio, o qual adora sob inúmeros nomes sagrados.

Ambrose Bierce
Dicionário do Diabo
Tradução de Rui Lopes
Tinta da China, 2006

Oferecido por Rui Almeida.

ALEGRIA BREVE

– Come!
Ele hesita, sem perceber: que faço eu ali na posição de tiro?
– Come, estupor! – berro alucinado.
Assusta-se, dá um pequeno salto de recuo. Então comovo-me, não por pena dele – pena por quem?
– Come, Médor! – repito com doçura.
Come em esperança o alimento da vida. Estamos fora do tempo e do mundo, na paragem breve ou longa para o balanço de um recomeço possível. Ninguém nos vê, tudo em nós é gratuito, separado de uma coordenação. O que se passa entre nós não tem leis que o classifiquem, um sinal que o distinga. É um acto absoluto e vazio – um acto de vida. Médor olha-me ainda, a interrogar. Olha de baixo, do fundo do seu medo e da sua estupefacção. Nesse instante-limite, tudo quanto lhe é da vida passada e futura vem à superfície aguada dos seus olhos. Quero que ele coma, não o posso matar em aflição. Espero que se decida, ponho a espingarda em descanso. O mundo espera comigo.
– Come, Médor!

Vergílio Ferreira, Alegria Breve (excerto), Lisboa: Bertrand, 7ª edição, 2004, p. 147

Oferecido por manuel a. domingos

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Eis a casa nova a prisão
disfarçada de refúgio aqui
te prendem os fios tecidos por ti
agora não podes fugir
cão solitário sem destino não é possível
devolver-te à procedência
és uma carta sem paradeiro certo
estás morto ou és endereço errado
é neste lar prisão que deves ficar
é aqui o teu último destino certo
pelo menos ninguém aqui virá
reclamar-te por teres certo valor
não tens nem o sonho de o vir a ter
a ração é feita de sons e de sonhos
de cão a enxerga de palha molhada
quando vier calor seca-te ao sol
é assim mesmo a vida de cão
solitário talvez e sem dono ou voz
de comando longínquo e cego
talvez só daqui a alguns anos
a bengala não é para te açoitar
dá o som e a cadência certa
ao cão sem dono e sem destino
irremediavelmente prisioneiro
de uma coleira com trela deslizante.

Carlos Alberto Machado
A Realidade Inclinada
Averno, 2003

Diário das Açoteias

3.

Falou-nos dos cães.
Cães lindíssimos, de língua negra – contou. Tinha-os visto. A rasgarem; a despedaçarem as vestes daqueles homens vindos de outros planetas. São de outros planetas mas lindos, lindos, lindos! A Rússia é bonita. Lá existe o nazismo. Como na Hungria. Quem manda são os ditadores e é terrível terrível terrível! Todo o mundo obedece. Todo o mundo! Eu estive na Rússia. Muitos crimes! O meu marido veio da Rússia. Trazia planos da Hungria. As línguas dos cães do mar negro são negras negríssimas! Os homens cheiram a sangue, somos todos felizes, meu Deus!, acredito em Deus!, somos todos felizes! «O Senhor é português?» - Não! Pois claro que não! O senhor é russo. O senhor é lindo! Lindo! Muito lindo!
Não receies, Glöcker. É inofensiva. Vê como sorri. Deve ter sessenta mas parece quarenta. Como sorri não obstante; apesar de tudo. Como nos volta as costas. Nada lhe interessa. Não lhe interessa. E, contudo, eis que de novo se anima; resplandece. Lado a lado do rosto, duas orelhas crescem, crescem, crescem. Uma estrela escorre-lhe da baba.
Ladra.
Ciumento, arfante, hipnotizado, o cão… repara: «Já tinhas visto uma palavra de quatro patas a abanar a cauda?»

Eduarda Chiote
A Décima Terceira Ilha
Edições Afrontamento, 1983

Oferecido por
Rui Almeida.

sábado, 15 de novembro de 2008

COMPOSIÇÃO DE LUGAR

Cerra os teus olhos, eu conto.
De manhã cedo acordado,
Abraão subiu ao monte.
E sob um céu de fornalha

viu na planura queimada
lá da banda de Sodoma
um cão a chorar por todas
as cinzas que foram casas.

O cachorro tão apócrifo
acrescenta um contraponto
a esse fumo canónico
do velho bíblico conto.

José António Almeida
A Mãe de Todas as Histórias
Averno

(excerto de) Conheces Blaise Cendrars?

(…)
O largo estava deserto. As entradas baixas das cubatas eram grandes buracos negros. Onde não se via ninguém. Como se tivessem fugido todos os habitantes. Conrado olhou à volta. Franzindo a testa.
O silêncio só era quebrado pelos ruídos cadenciados de um pilão. Que vinham da outra banda. Da floresta. Olhou para lá, interrogativamente. Nguongo Ai seguiu-lhe o gesto.
«Pilão! Tapioca!»
Percorreram todo o terreiro. Vazio de gente. Um pequeno cão cinzento, magro e coberto de feridas, atado a um pau, ladrou fracamente quando se aproximaram. Um dos soldados fingiu que lhe dava um pontapé. O animal, acovardado, fugiu. Encolheu-se à sombra.
«Não te chegues muito», disse um. «Os cães destes macacos são como os donos. Fingem que têm medo, mas, se te distrais, ferram-te logo o dente!»
(…)

Manuel de Seabra
Conheces Blaise Cendrars?
Publicações Europa-América, 1988
Oferecido por Rui Almeida.

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