Antologia de textos com cães dentro.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CÃO SOLTEIRO

Uiva assim alegre o cão solteiro.
Confundem-no com a piedade,
o desabrigo, ali vou eu
salvo a misericórdia divina,
ali não vou, nunca, que sou
de outra espécie, menos complicada.
Inquieto, para si mesmo indócil,
o cão em semicírculos de raiva
e liberdade espanta quem o vê.
Parece quase humano, mas o furor
animal dele aquieta como boa fraude
a nossa empatia e desassossego.
Dias de cão, uma década e meia,
oitenta anos em vida de gente.


Pedro Mexia, in Uma vez que tudo se perdeu, Tinta-da-China, Novembro de 2015, p. 43.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Fico a observá-los da varanda:
vértices moventes, desenham
com muro de permeio volúveis
geometrias pelo tempo de um cigarro.

Olho para os bichos enquanto sopro
o fumo e me acerco de mim e aqueço
a mão para escrever este poema.

Daqui a pouco, o dono dos três
que ladram à direita virá prendê-los, o outro
corre de ponta a ponta e salta, só
um ponto no rectângulo da esquerda.

Esférico centro de uma circunferência
imaginária, vou enchendo de traços
a trama vazia da varanda mental.

E só então parece mesmo
que estou a vê-los, refém
de um outro olhar, cão
entre cães.


José Ricardo Nunes, in Três Oito e Setenta e Cinco, Companhia das Ilhas, Novembro de 2015, p. 9.

domingo, 30 de agosto de 2015




Via Rui Almeida.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

"QUE CÃO TÃO BANAL!"

Foi pena não terem chegado a um acordo porque afinal do que se estava a falar era das paixões da alma, desses cães ávidos que devoraram Actéon quando ele queria ver Diana no banho.
   Os cães são muito impressionantes. A gente está sempre à espera que eles tirem a máscara de Anubis e se sentem à mesa com a gente encomendando uma cerveja bem gelada:
   - Fuma?
   - Não, obrigado, agora é muito mais original não ser fumador (a sinceridade dos animais é muito embaraçosa), mas comerei de bom grado um cachorro quente, com manteiga mas sem mostarda, faz-me espirrar, sabe, tenho um nariz muito fino (ri-se)... Está imenso calor, ainda não mudei de fato este ano, a minha dona ainda não me levou ao tosquiador, acha que ainda está frio e anda a gente aqui a suar e depois admiram-se que a gente tenha tanta sede - outra cerveja, faz favor, bem gelada - pois é, eu sou muito sequioso, também passo a vida a correr, a minha dona dá-me imenso trabalho, tem uma casa tão grande e tão constantemente ameaçada de assalto que eu não tenho um momento de descanso. Senão demitem-me e eu gosto da minha dona, compreende, afeiçoei-me a ela desde pequeno, foi ela quem me chamou a si, me agasalhou, me sustentou e agora que sou já muito maior do que ela sinto-me na obrigação de a proteger contra os intrusos, cães ou não cães. É uma questão de gratidão, de coerência, os cães fizeram-se para isso, ser cão é ser isso mesmo!
   - Que cão tão banal!
   - É um cão protótipo, um exemplar de estatística.
   - Mas então não era das paixões da alma que estavam a falar?
   - Era, mas também há paixões de alma banais.
   - Hoje em dia está tudo banalizado, não há dúvida.
 
 
Ana Hatherly, in O Mestre, 5.ª edição, Ulisseia, Novembro de 2010, pp. 147-148.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

ARQUESSÍTIO

tão para escaladas monte a eito
vira para nós o focinho ofegante o cão afável
espera que o bafejo nosso do bafejo seu
se aproxime

no Sol que declinou o azul ruboriza
e perto as pás das ventoinhas rodam vigorosas
deitam interrompidas sombras às veredas
postas que estão nestas alturas

Dezembro estende o frio desta hora
as aves sobressaltam no tumulto dos empenhos
erguemos os olhos vemo-las partirem para o lado
da estrada que contorna em baixo uma
aldeia-presépio e no horizonte os aviões riscam
fulvos de ocaso e longitude

é pesado imponente o artifício do planeta
na sua viagem sem destino escuridão adentro
e cismados com o fardo deste peso logo o xisto
se destapa no declive da laje que chapeia
à hora mágica

o cão pisa fareja alheado dos contornos
que há quantos mil anos alguém gravou aqui
brilhante do mesmo astro no mesmo
solo

círculos e espirais
linhas serpentiformes enfeitadas de líquen
sobre as quais nos deitamos
um momento

ainda o cão era um lobo nada brando
e já sinais destes brotavam da gaveta do fundo
colectiva

neves dilúvios fogos sismos não apagaram
a espiral da Idade do Bronze
menor persistência terá este poema martelado
agora mesmo na idade do tombo

Miguel-Manso, in Persianas, Edições Tinta-da-China, Abril de 2015, pp. 189-190.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

MINISTÓRIAS DE DALTON TREVISAN

Amor, o ingênuo menino que afaga uma cadela raivosa. Ai, não, é mordido. E condenado a viver babando, rangendo os dentes, ganindo para uma lua de sangue.

***

Um homem, ai dele, que sofre dos nervos. Mora com a mulher e o filho na sua chacrinha. Para diversão do piá compra a mais branca das cabritas. Sem sossego lida na pequena roça. Bondoso e manso, basta não o contrarie. Uma tarde discute com a mulher. Sai, batendo a porta. Alegrinho, o cão late e pula à sua volta. Manda que se cale e esse aí pulando e latindo. Apanha numa forquilha o chicote e malha com força. O cãozinho arrasta as pernas traseiras numa sombra molhada. E some ganindo no mato. O homem vai em frente. Ao vê-lo, faceira na sua fitinha encarnada, berra a cabrita aos saltos. Manda que se cale.

***

Esse mesmo cãozinho tonto aos saltos e latidos perseguindo a negra sombra de uma borboleta branca.

***

O cão olha para o menino: o sol que move a lua, os planetas - e o seu rabinho.


Dalton Trevisan, dos livros Ah, é? (3.ª edição, 2013) e 234 (3.ª edição, 2013), Editora Record.

quarta-feira, 25 de março de 2015

(passagem de modelos)

   — Passa a realidade na pessoa do cão das quatro patas que nunca se encontrarão no solo ao mesmo tempo, a menos que se não trate da realidade em movimento.
   Assim, a realidade é realmente bípede e virtualmente quadrúpede.
   — Passa a realidade na pessoa da trela que liga o cão ao elemento terceiro ainda impronunciável. É uma trela em movimento, porque a realidade na pessoa do cão também o é, e espera-se que o suposto terceiro elemento da realidade também o seja. A realidade trela assegura a liberdade real da realidade cão e a limitação virtual dessa liberdade. Esta virtual limitação assegura a coordenação dinâmica do primeiro exposto elemento da realidade, do segundo que se está a expor elemento da realidade e do a expor terceiro elemento da realidade.
   — Passa a realidade na pessoa de uma pessoa ligada à realidade na pessoa de uma trela ligada à realidade na pessoa de um cão. É a realidade pessoa em movimento. Tem dois pés que nunca estarão no solo ao mesmo tempo.
   Pelo que a realidade é realmente unípede e virtualmente bípede.
   Nenhuma destas realidades é a realidade, nem os três elementos juntos são a realidade. Apenas os três elementos passando assim constituem a realidade.
   Isto pode ser uma arte poética.
   Também pode ser uma ironia.


Herberto Helder, in Photomaton & Vox, 3.ª edição, Assírio & Alvim, Outubro de 1995, pp. 81-82.

segunda-feira, 9 de março de 2015

OS CÃES DA MEMÓRIA

Quando visto o casaco eles não me largam.
Querem que os leve a dar uma volta,
que lhes atire um pau para que o tragam de volta.
Os olhos deles seguem-me pelo quarto.
Quando pego num livro
baixam a cabeça envergonhados.
 
Levei-os aos subúrbios
e abri a porta do carro.
Quando cheguei a casa
estavam à minha espera à entrada.
Como é que me convenci
de que ia viver sem eles?
 
 
Hugo Williams, in Última Semana, selecção e tradução de Pedro Mexia, Tinta-da-China, Novembro de 2014, p. 105.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

ESTRANHO PARA O MUNDO OUSEI SENTIR
O rente chão das coisas, a crisálida
Manhã, o dilatar da tarde, a pálida
Viúva e o seu cortejo a reluzir.
Sentindo um sentimento pleno, fundo,
Só de ver uma aldeia que dormisse,
Um cão que ladrasse, um trem que partisse...
E eu se ficasse um pouco mais no mundo!...
E adeus, porém, às coisas, eis que parto,
Do mundo não sou, fui um ser de nada.
A aldeia, o cão, o trem só uma estrada
E tudo o que não tive aqui reparto.
Curioso como um monstro se afeiçoa
Ao mundo mau dos homens que o magoa...

Daniel Jonas, in , Assírio & Alvim, Abril de 2014, p. 56.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O SERVO

Tal como na morte de Eumeu,
servo de Ulisses,
nas margens de Ítaca, o silêncio
guardou o grito do velho servo,
aqui, nesta ilha de terra na terra,
também o cão vai reconhecer o espectro
do seu dono que, entre as áleas,
especula sobre o sentido do sonho.
Tudo passa e regressa. Somente
o servo se apagou como vela antes
das gerações vindouras o saudarem.
Pais, filhos e netos ouviram
o tinir dessa enxada entre pedras
e as benditas sementes no terreno.
Não os filhos dos netos o verão
quando nascerem como num regresso
ao mundo de toda a matéria.


Fiama Hasse Pais Brandão, in Cenas Vivas, Relógio d'Água, Abril de 2000, p. 79.

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